sexta-feira, outubro 01, 2010

CONDUTA CRISTÃ - 8. O GRANDE PECADO



8. O GRANDE PECADO
Chego agora à parte em que a moral cristã difere mais nitidamente de todas as outras morais. Existe um ví­cio do qual homem algum está livre, que causa repug­nância quando é notado nos outros, mas do qual, com a exceção dos cristãos, ninguém se acha culpado. Já ouvi quem admitisse ser mau humorado, ou não ser capaz de resistir a um rabo de saia ou à bebida, ou mesmo ser covarde. Mas acho que nunca ouvi um não-cristão se acusar desse vício. Ao mesmo tempo, é raríssimo encon­trar um não-cristão que tenha alguma tolerância com esse vício nas outras pessoas. Não existe nenhum outro defeito que torne alguém tão impopular, e mesmo as­sim não existe defeito mais difícil de ser detectado em nós mesmos. Quanto mais o temos, menos gostamos de vê-lo nos outros.
O vício de que estou falando é o orgulho ou a pre­sunção. A virtude oposta a ele, na moral cristã, é cha­mada de humildade. Você deve se lembrar de que, quan­do falávamos sobre a moralidade sexual, adverti que não era ela o centro da moral cristã. Bem, agora chegamos ao centro. De acordo com os mestres cristãos, o vício fun­damental, o mal supremo, é o orgulho. A devassidão, a ira, a cobiça, a embriaguez e tudo o mais não passam de ninharias comparadas com ele. É por causa do orgulho que o diabo se tornou o que é. O orgulho leva a todos os outros vícios; é o estado mental mais oposto a Deus que existe.
Parece que estou exagerando? Se você acha que sim, pense um pouco mais no assunto. Agora há pouco, ob­servei que, quanto mais orgulho uma pessoa tem, me­nos gosta de vê-lo nos outros. Se quer descobrir quão orgulhoso você é, a maneira mais fácil é perguntar-se: "Quanto me desagrada que os outros me tratem como inferior, ou não notem minha presença, ou interfiram nos meus negócios, ou me tratem com condescendência, ou se exibam na minha frente?" A questão é que o or­gulho de cada um está em competição direta com o orgu­lho de todos os outros. Se me sinto incomodado por­que outra pessoa fez mais sucesso na festa, é porque eu mesmo queria ser o grande sucesso. Dois bicudos não se beijam. O que quero deixar claro é que o orgulho é es­sencialmente competitivo — por sua própria natureza -, ao passo que os outros vícios só o são acidentalmente, por assim dizer. O prazer do orgulho não está em se ter algo, mas somente em se ter mais que a pessoa ao lado. Dizemos que uma pessoa é orgulhosa por ser rica, inte­ligente ou bonita, mas isso não é verdade. As pessoas são orgulhosas por serem mais ricas, mais inteligentes e mais bonitas que as outras. Se todos fossem igualmente ri­cos, inteligentes e bonitos, não haveria do que se orgu­lhar. É a comparação que torna uma pessoa orgulhosa: o prazer de estar acima do restante dos seres. Eliminado o elemento de competição, o orgulho se vai. E por isso que eu disse que o orgulho ê essencialmente competitivo de uma forma que os outros vícios não são. O impulso sexual pode levar dois homens a competir se ambos es­tão interessados na mesma moça. Mas a competição ali é acidental; eles poderiam, com a mesma facilidade, ter se interessado por moças diferentes. Um homem orgu­lhoso, porém, fará questão de tomar a sua garota, não por desejá-la, mas para provar para si mesmo que é me­lhor do que você. A cobiça pode levar os homens a com­petir entre si se não existe o suficiente para todos; mas o homem orgulhoso, mesmo que tenha mais do que ja­mais poderia precisar, vai tentar acumular mais ainda só para afirmar seu poder. Praticamente todos os males no mundo que as pessoas julgam ser causados pela cobi­ça ou pelo egoísmo são bem mais o resultado do orgulho. Veja a questão do dinheiro. A cobiça pode fazer com que o homem deseje ganhar dinheiro para comprar uma casa melhor, poder viajar nas férias e ter coisas mais apetitosas para comer e beber. Mas só até certo ponto. O que faz com que um homem que ganha 10.000 li­bras por ano fique ansioso para ganhar 20.000 libras? Não é a cobiça de mais prazer. A soma de 10.000 libras pode sustentar todos os luxos de que ele queira desfrutar. É o orgulho — o desejo de ser mais rico que os outros ricos e, mais do que isso, o desejo de poder. Pois, evi­dentemente, é do poder que o orgulho realmente gos­ta: nada faz o homem sentir-se tão superior aos outros quanto o fato de poder movê-los como soldadinhos de brinquedo. Por que uma moça bonita à caça de admi­radores espalha a infelicidade por onde quer que vá? Cer­tamente não é por causa de seu instinto sexual: esse tipo de moça é quase sempre sexualmente frígida. É o orgulho. O que faz um líder político ou uma nação inteira quererem expandir-se indefinidamente, exigindo tudo para si? De novo, o orgulho. Ele é competitivo pela pró­pria natureza: é por isso que se expande indefinidamen­te. Se sou um homem orgulhoso, enquanto existir al­guém mais poderoso do que eu, ou mais rico, ou mais es­perto, esse será meu rival e meu inimigo.
Os cristãos estão com a razão: o orgulho é a causa principal da infelicidade em todas as nações e em todas as famílias desde que o mundo foi criado. Os outros ví­cios podem, às vezes, até mesmo congregar as pessoas: pode haver uma boa camaradagem, risos e piadas entre gente bêbada ou entre devassos. O orgulho, porém, sem­pre significa a inimizade - é a inimizade. E não só ini­mizade entre os homens, mas também entre o homem e Deus.
Em Deus defrontamos com algo que é, em todos os aspectos, infinitamente superior a nós. Se você não sabe que Deus é assim — e que, portanto, você não é nada comparado a ele -, não sabe absolutamente nada sobre Deus. O homem orgulhoso sempre olha de cima para baixo para as outras pessoas e coisas: é claro que, fazen­do assim, não pode enxergar o que está acima de si.
Isso levanta uma questão terrível. Como podem exis­tir pessoas evidentemente cheias de orgulho que decla­ram acreditar em Deus e se consideram muitíssimo reli­giosas? Infelizmente, elas adoram um Deus imaginário. Na teoria, admitem que não são nada comparadas a esse Deus fantasma, mas na prática passam o tempo todo a imaginar o quanto ele as aprova e as tem em melhor con­ta que ao resto dos comuns mortais. Ou seja, pagam al­guns tostões de humildade imaginária para receber uma fortuna de orgulho em relação a seus semelhantes. Suponho que é a esse tipo de gente que Cristo se referia quando dizia que pregariam e expulsariam os demônios em seu nome, mas no final ouviriam dele que jamais os conhecera. Cada um de nós, a todo momento, vê-se diante dessa armadilha mortal. Felizmente, temos como saber se caímos nela ou não. Sempre que constatamos que nossa vida religiosa nos faz pensar que somos bons — sobretudo, que somos melhores que os outros —, po­demos ter certeza de que estamos agindo como mario­netes, não de Deus, mas do diabo. A verdadeira prova de que estamos na presença de Deus é que nos esque­cemos completamente de nós mesmos ou então nos ve­mos como objetos pequenos e sujos. O melhor é esque­cer-nos de nós mesmos.
É uma coisa terrível que o pior de todos os vícios insinue-se assim no próprio centro de nossa vida religio­sa. Mas é fácil saber por que isso acontece. Todos os vícios menores vêm do diabo quando trabalha sobre o nosso lado animal. Este vício, porém, não nasce em absoluto da nossa natureza animal. Vem diretamente do infer­no. E puramente espiritual: conseqüentemente, muito mais sutil e perigoso. Pela mesma razão, o orgulho é usa­do com freqüência para vencer os vícios mais simples. Os professores, que sabem disso, apelam costumeiramente para o orgulho dos meninos, ou, como dizem, para seu amor-próprio, a fim de fazê-los comportar-se direito. Mais de um homem conseguiu superar a covar­dia, a luxúria ou o mau humor pela crença inculcada de que tudo isso estava abaixo da sua dignidade. Ou seja, venceram pelo orgulho. O diabo ri às gargalhadas. Fica satisfeitíssimo de nos ver castos, corajosos e controla­dos desde que, em troca, prepare para nós uma Dita­dura do Orgulho. Do mesmo modo, ele ficaria contente de curar as frieiras dos nossos pés se pudesse, em troca, nos deixar com câncer. O orgulho é um câncer espiri­tual: ele corrói a possibilidade mesma do amor, do con­tentamento e até do bom senso.
Antes de sair deste assunto, é bom me resguardar de certos mal-entendidos:
(1) O prazer do elogio não é orgulho. A criança que recebe um tapinha nas costas por fazer bem o dever de casa, a mulher cuja beleza é elogiada pelo marido, a alma salva para quem Cristo diz "Muito bem": todos ficam contentes, e têm todo o direito de ficar. Em cada uma dessas situações, as pessoas não se comprazem naquilo que são, mas no fato de terem agradado a alguém que (pelos motivos corretos) queriam agradar. O problema começa quando você deixa de pensar "Eu o agradei: tudo está bem", e substitui esse pensamento por outro: "Eu sou mesmo uma pessoa magnífica por ter feito isso." Quanto mais você se compraz em si mesmo e menos no elogio, pior você fica. Quando todo o seu deleite vem de você mesmo e você não se importa mais com o elogio, chegou ao fundo do poço. É por isso que a vaidade, em­bora seja o tipo de orgulho mais visível no exterior, é também o menos grave e mais facilmente perdoável. A pessoa vaidosa deseja demais o elogio, o aplauso, a ad­miração, e está sempre em busca dessas coisas. É um de­feito - mas é um defeito quase infantil e (estranhamen­te) bastante modesto. Demonstra que a pessoa não está inteiramente satisfeita com a admiração que nutre por si mesma. Levando em conta a opinião alheia, ela mos­tra que ainda valoriza um pouco as outras pessoas. Em resumo, ela ainda é humana. O orgulho diabólico nas­ce quando desprezamos tanto os outros que não mais le­vamos em consideração o que pensam de nós. Eviden­temente, é corretíssimo, e às vezes é nosso dever, não nos importar com a opinião dos outros, mas sempre pelo motivo correto, ou seja, porque nos importamos infi­nitamente mais com a opinião de Deus. Já o homem orgulhoso tem um motivo diferente para não se impor­tar. Ele pensa: "Por que devo me importar com o aplau­so da plebe se a opinião dela não vale nada? Mesmo se valesse, não sou de ficar corado por causa de um cumpri­mento como se fosse uma mocinha em seu primeiro baile. Não; sou dono de uma personalidade adulta e integrada. Tudo o que fiz foi para satisfazer meus pró­prios ideais - ou minha consciência artística — ou minha tradição familiar - ou, resumindo, porque Eu Sou O Tal. Se a turba gosta ou não, o problema é dela. Ela não vale nada para mim." Dessa maneira, o orgulho plena­mente desenvolvido pode até coibir a vaidade; como eu disse agora há pouco, o diabo adora "curar" um de­feito menor com um maior. Devemos nos esforçar para não sermos vaidosos, mas não devemos jamais nos valer do orgulho para curar a vaidade.
(2) Dizemos, em inglês [ou em português], que um homem tem "orgulho" de seu filho, de seu pai, de sua escola, de seu regimento. Podemos nos perguntar se, nes­se caso, o "orgulho" é um pecado. Acho que isso depende do que queremos dizer com "ter orgulho de algo". Com muita freqüência, essa expressão significa "ter uma calo­rosa admiração por algo ou alguém". Tal admiração, evi­dentemente, está bem distante do pecado. Mas talvez sig­nifique que a pessoa "empine o nariz" por ter um pai ilus­tre ou pertencer a um regimento famoso. Isso com certe­za é um defeito; mesmo nesse caso, entretanto, é melhor isso que ter orgulho de si mesmo. Amar e admirar algo exterior a nós mesmos é um passo para longe da ruína espiritual, desde que esse amor e admiração não sobre­pujem o que sentimos por Deus.
(3) Não devemos julgar que Deus proibiu o orgu­lho porque ele o ofende, ou que a humildade nos foi prescrita por causa de sua dignidade — como se o próprio Deus fosse orgulhoso. Ele não está nem um pouco preocupado com sua dignidade. A questão é simples: ele quer que nós o conheçamos, quer se doar para nós. O ser humano e ele são feitos de tal modo que, no mo­mento em que efetivamente entramos em contato com ele, nos sentimos de fato humildes: deliciosamente hu­mildes, aliviados de uma vez por todas do fardo das fal­sas crenças sobre nossa dignidade, que só serviam para nos deixar desassossegados e infelizes. Deus tenta nos tornar humildes para que esse momento seja possível: o momento de lançarmos fora a tola e horrenda fantasia com que nos adornamos e que nos entravava os movi­mentos, enquanto a exibíamos por aí feito idiotas. Gos­taria de ter mais experiência da humildade. Assim, pro­vavelmente poderia falar mais sobre o alívio e o consolo de despir essa fantasia - de lançar fora esse falso eu, com todos os seus "Olhem para mim" e "Eu sou um bom menino, não sou?", todas as suas poses e falsas postu­ras. O mero fato de estar próximo disso, ainda que por um breve momento, é tão reconfortante quanto um gole de água fresca no deserto.
(4) Não pense que, se você conhecer um homem verdadeiramente humilde, ele será o que as pessoas cha­mam de "humilde" hoje em dia: não será nem uma pes­soa submissa ou bajuladora, que vive lhe dizendo que não é nada. Provavelmente, o que você vai pensar dele é que se trata de um camarada animado e inteligente, que realmente se interessou pelo que você tinha a lhe di­zer. Se você não simpatizar com ele, será porque sente um pouco de inveja de alguém que parece contentar-se tão facilmente com a vida. Ele não estará pensando so­bre a humildade; não estará pensando em si mesmo de modo algum.
Se alguém quer adquirir a humildade, creio poder dizer-lhe qual é o primeiro passo: é reconhecer o pró­prio orgulho. Aliás, é um grande passo. O mínimo que se pode dizer é que, se ele não for dado, nada mais po­derá ser feito. Se você acha que não é presunçoso, isso sig­nifica que você é presunçoso demais.
C.S.LEWIS

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