domingo, dezembro 19, 2010

CONDUTA CRISTÃ - 12. A FÉ II



Vou começar por dizer algo em que gostaria que to­dos prestassem a máxima atenção. E o seguinte. Se este capítulo não significar nada para você, se ele der a im­pressão de procurar responder a perguntas que você nun­ca fez, largue-o imediatamente. Não se amofine por causa dele. Existem coisas no cristianismo que podem ser compreendidas mesmo por quem está de fora, por quem ainda não é cristão; existe, por outro lado, um grande número de coisas que só podem ser compreen­didas por quem já percorreu um certo trecho da estra­da cristã. São coisas puramente práticas, embora não o pareçam. São instruções de como lidar com certas en­cruzilhadas e obstáculos da jornada, instruções que não têm sentido até que a pessoa esteja diante deles. Sem­pre que você deparar com uma frase de um escrito cristão que você não seja capaz de compreender, não se aborre­ça. Deixe-a de lado. Virá um dia, talvez anos mais tarde, em que você subitamente entenderá o que ela queria di­zer. Se não consegue entendê-la agora, é porque ela só lhe faria mal.
E claro que isso diz respeito não só aos outros, mas a mim também. O que tentarei explicar neste capítulo talvez esteja muito acima da minha compreensão. E pos­sível que eu pense que já tenha chegado lá, mas na rea­lidade não tenha. Só posso pedir aos cristãos instruídos que ouçam com muita atenção o que digo e me avisem se estiver errado; quanto aos outros, que aceitem com cautela o que for dito - como algo que ofereço por pen­sar que pode ajudar, não por ter a certeza de estar com a razão.
Estou tentando falar sobre a fé nesse segundo sen­tido, o mais elevado. Disse há pouco que essa questão surge no homem depois que ele tentou ao máximo pra­ticar as virtudes cristãs, constatou-se incapaz e chegou à conclusão de que, mesmo que tivesse conseguido, não estaria oferecendo a Deus nada que já não lhe per­tencesse. Em outras palavras, ele descobre que está fa­lido. E bom repetir: o que importa para Deus não são nossas ações enquanto tais. O que lhe importa é que sejamos criaturas de determinado tipo ou qualidade — o tipo de criaturas que ele tencionava que fôssemos quan­do nos criou -, vinculadas a ele de uma determinada maneira. Não acrescento "e vinculados uns aos outros", porque isso é uma conseqüência natural. Se você tem a atitude correta diante de Deus, inevitavelmente terá a ati­tude correta diante do próximo, da mesma forma que, quando os raios de uma roda estão bem encaixados no cubo e no aro, inevitavelmente guardam as distâncias corretas entre si. E, enquanto o homem concebe Deus como uma espécie de examinador que nos passa uma prova, ou como a outra parte numa espécie de barga­nha em que cada parte tem seus direitos e obrigações, não está ainda com a atitude correta diante de Deus. Não sabe nem o que ele é nem o que é Deus, e só poderá ter a atitude correta quando descobrir que está falido.
Quando digo "descobrir", quero dizer exatamente isso: não é o mesmo que repetir palavras como um pa­pagaio. Qualquer criança que tenha recebido a educa­ção cristã mais elementar aprende rapidamente que o homem não tem nada a oferecer a Deus que já não seja dele, e que nem isso conseguimos oferecer sem surru­piar uma parte para nós. Mas estou falando de uma des­coberta real, advinda da experiência pessoal.
Nesse sentido, só podemos descobrir que somos in­capazes de cumprir a Lei de Deus depois de tentar cumpri-la com todas as nossas forças (e fracassar em seguida). Se não tentarmos, continuaremos pensando em nosso íntimo que, se nos esforçarmos mais na próxima vez, conseguiremos ser completamente bons. Assim, em cer­to sentido, a estrada que nos leva de volta a Deus é a do esforço moral, a via da auto-superação. Mas, em outro sentido, não é o esforço que nos levará para casa. Toda a força que fazemos nos conduz ao momento crucial em que nos voltamos para Deus e lhe dizemos: "O Se­nhor tem de fazer isso. Não consigo." Imploro que vo­cês não comecem a se perguntar: "Será que já cheguei a esse momento?" Não fique sentado esperando, obser­vando a própria mente para ver se o momento está che­gando. Isso o levará a tomar o bonde errado. Quando acontecem as coisas mais importantes da vida, nem sem­pre nos damos conta do que está ocorrendo. A pessoa não pára de repente e diz para si mesma: "Opa, estou crescendo!" Em geral, é só quando olha para trás que percebe o que aconteceu e reconhece que é isso que as pessoas chamam de "crescer". Isso pode ser notado até nos assuntos mais prosaicos. O homem que começa a querer saber se vai conseguir dormir ou não, com toda probabi­lidade vai passar a noite em claro. Além disso, o fenôme­no de que estou falando pode não ocorrer de repente, como ocorreu com o apóstolo Paulo ou Bunyan. Pode se dar de forma tão gradual que ninguém consiga apontar uma hora específica, ou mesmo o ano em que acon­teceu. O que interessa é a natureza da mudança em si, e não como nos sentimos quando ela ocorre. É a mudan­ça do sentimento de confiança em nossos próprios es­forços para um estado em que nos desesperamos com­pletamente e deixamos tudo nas mãos de Deus.
Sei que as palavras "deixar tudo nas mãos de Deus" podem ser entendidas de forma errada, mas vamos dei­xá-las assim por enquanto. O sentido em que um cristão deixa tudo nas mãos de Deus é que ele deposita toda a sua confiança em Cristo: confia em que, de alguma for­ma, Cristo vai dividir sua obediência humana perfeita com ele, obediência que Cristo carregou consigo do nascimento à crucificação. Cristo fará do homem uma imagem de si, compensando, de certa forma, suas de­ficiências. Na linguagem cristã, ele repartirá a sua "fi­liação", fará de nós "filhos de Deus", como ele mesmo. Se lhe agrada colocar as coisas sob essa perspectiva, Cristo nos oferece algo por nada; na verdade, oferece tudo por nada. Num sentido, toda a vida cristã se baseia em aceitar essa ofer­ta extraordinária. A dificuldade está em chegar ao pon­to de reconhecer que tudo o que fazemos e podemos fazer se resume a nada. Gostaríamos que a coisa fosse diferente, que Deus contasse nossos pontos bons e ignorasse os ruins. Ou senão, num certo sentido, podemos dizer que nenhuma tentação pode ser superada se não desistirmos de superá-la - se não jogarmos a toalha. Por outro lado, ninguém poderia "parar de tentar" da for­ma correta e pelas razões corretas se antes não tentasse com todas as suas forças. E, num outro sentido ainda, é claro que deixar tudo nas mãos de Cristo não signifi­ca que devemos parar de nos esforçar. Confiar nele sig­nifica tentar fazer tudo o que ele disse. Não há sentido em dizer que confiamos em tal pessoa se não aceitamos seus conselhos. Logo, se você realmente se entregou nas mãos dele, conclui-se daí que está tentando obedecer-lhe. No entanto, está tentando de uma forma nova, menos preocupada. Não está fazendo essas coisas para ser sal­vo, mas porque ele já começou a salvá-lo. Não está es­perando ganhar o Paraíso como recompensa das suas ações, mas quer inevitavelmente agir de uma determi­nada forma porque já tem dentro de si os primeiros e tênues vislumbres do Paraíso.
Os cristãos sempre tiveram o costume de polemi­zar sobre o que conduz o cristão à sua morada: se as boas ações ou se a fé em Cristo. Na verdade, não tenho o direito de falar sobre um assunto tão difícil, mas me parece que é como perguntar qual das lâminas de uma tesoura é a mais importante. O esforço moral sério é a única coisa que pode nos conduzir ao ponto de jogar a toalha. A fé em Cristo é a única coisa que pode nos sal­var do desespero nesse ponto: e, dessa fé, é inevitável que surjam boas ações. No passado, alguns grupos cris­tãos acusaram outros grupos cristãos de parodiar a ver­dade de duas formas. O exagero das situações talvez ajude a tornar a verdade mais clara. Um dos grupos era acusado de dizer: "As boas ações são tudo o que interessa. A melhor das boas ações é a caridade. O melhor tipo de caridade é dar dinheiro. A melhor forma de dar di­nheiro é fazer uma doação para a Igreja. Logo, faça uma doação de 10.000 libras e garantiremos sua entrada na vida eterna." A resposta a esse absurdo é que as ações feitas com essa intenção, com a idéia de que o Paraíso pode ser comprado, não são boas ações de forma alguma, mas somente especulações comerciais. Outro grupo era acusado de dizer: "A fé é tudo o que importa. Logo, se você tem fé, não importam as suas ações. Peque à von­tade, meu filho, divirta-se a valer, que para Jesus Cristo não vai fazer a mínima diferença no final." A resposta a esse absurdo é que, se o que você chama de "fé" em Cris­to não implica dar atenção ao que ele disse, ela não é fé de maneira alguma — nem Fé nem confiança, mas ape­nas a aceitação mental de alguma teoria a seu respeito.
A Bíblia encerra a discussão quando junta as duas coisas numa única sentença admirável. A primeira me­tade diz: "Ponham em ação a salvação de vocês com temor e tremor" - o que dá a idéia de que tudo depende de nós e de nossas boas ações; mas a segunda metade complementa: "Pois é Deus que efetua em vocês tanto o querer quanto o realizar" - o que dá a idéia de que Deus faz tudo e nós, nada. Esse é o tipo de coisa com a qual nos defrontamos no cristianismo. Fico perplexo, mas não surpreso. Veja você, estamos tentando compreender e separar em compartimentos estanques o que Deus faz e o que o homem faz quando se põem a trabalhar juntos. É claro que a nossa concepção inicial desse trabalho é a de dois homens que atuam em conjunto, de quem poderíamos dizer: "Ele fez isto e eu, aquilo." Porém, essa maneira de pensar não se sustenta. Deus não é as­sim. Não está só fora de você, mas também dentro: mes­mo que pudéssemos compreender quem fez o quê, não creio que a linguagem humana pudesse expressá-lo de forma apropriada. Na tentativa de expressar essa verdade, as diferentes igrejas dizem coisas diversas. Você há de cons­tatar, porém, que mesmo as que mais insistem na im­portância das boas ações lhe dirão que você precisa ter fé; e as que mais insistem na fé lhe dirão para praticar boas ações. Neste assunto, não me arrisco a ir mais longe.
Creio que todos os cristãos concordariam comigo se eu dissesse que, apesar de o cristianismo, num primeiro momento, dar a impressão de só se preocupar com a mo­ral, com deveres, regras, culpa e virtude, ele nos leva além, para fora de tudo isso e para algo completamente dife­rente. Vislumbramos então um país cujos habitantes não falam dessas coisas, a não ser, talvez, como piada. Todos eles são repletos do que chamaríamos de bondade, co­mo um espelho é repleto de luz. Eles mesmos, porém, não chamam isso de bondade. Não o chamam por nome algum. Não pensam a respeito desse assunto, pois estão ocupados demais em contemplar a fonte de onde isso provém. Mas nos aproximamos aí do ponto em que a estrada cruza o limiar deste nosso mundo. Nenhum olhar pode enxergar muito além disso; muitos olhares podem enxergar bem mais longe que o meu.

C.S.LEWIS

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