Passaremos a postar uma série de reflexões de C.S.Lewis sobre a Conduta Cristã, extraidas do Livro "Cristianismo puro e simples".
Serão doze artigos que certamente edificarão a todos que os lerem, por essa razão, não apenas leia, mas procure extrair deles toda a sua essencia moral, pois eles nos ajudarão não apenas a sermos melhores cristãos, mas serão fortes aliados em nosso relacionamento com todos que nos cercam.
Boa leitura.
Antonio Carlos, aprendiz de servo.
CONDUTA CRISTÃ
1. AS TRÊS PARTES DA MORAL
Conta-se a história de um garoto a quem perguntaram como achava que Deus era. O garoto respondeu que, pelo que era capaz de compreender, Deus era "o tipo de pessoa que está sempre xeretando a vida dos outros para ver se alguém está se divertindo e tentar acabar com isso". Infelizmente, parece-me que é essa a idéia que um número considerável de pessoas faz da palavra "Moral": algo que se intromete em nossa vida e nos impede de ter momentos agradáveis. Na realidade, as regras morais são como que instruções de uso da máquina chamada Homem. Toda regra moral existe para prevenir o colapso, a sobrecarga ou uma falha de funcionamento da máquina. E por isso que essas regras, no começo, parecem estar em constante conflito com nossas inclinações naturais. Quando estamos aprendendo a usar qualquer mecanismo, o instrutor vive dizendo "Não, não faça isso", porque existem diversas coisas que, embora pareçam muito naturais e até acertadas na forma de lidar com a máquina, na verdade não funcionam.
Certas pessoas preferem falar de "ideais" morais em vez de regras morais, e de "idealismo" moral em vez de obediência. Ora, é certo que a perfeição moral é um "ideal", na medida em que é inalcançável. Nesse sentido, toda perfeição é, para nós, seres humanos, um ideal. Não conseguimos dirigir perfeitamente um automóvel, jogar tênis perfeitamente ou desenhar uma linha perfeitamente reta. Num outro sentido, porém, é enganador dizer que a perfeição moral é um ideal. Quando um homem diz que certa mulher, casa, barco ou jardim é "seu ideal", não pretende (a menos que seja um tolo) que todos tenham o mesmo ideal. Nesses assuntos, temos o direito de ter gostos diferentes e, conseqüentemente, ideais diferentes. E perigoso, porém, dizer que um homem que se esforça para seguir a lei moral seja um homem de "altos ideais", pois isso pode nos dar a impressão de que a perfeição moral é um mero gosto pessoal dele e que o restante dos homens não teria o dever de procurar realizá-la. Esse erro seria desastroso. A conduta perfeita talvez seja tão inalcançável quanto a perfeita perícia ao volante, mas é um ideal necessário prescrito a todos os homens por causa da própria natureza da máquina humana, da mesma forma que a pilotagem perfeita é prescrita a todos os motoristas pela própria natureza dos automóveis. E seria ainda mais perigoso se você se considerasse uma pessoa de "altos ideais" só porque tenta não mentir (em vez de só contar mentirinhas ocasionais), não cometer adultério (em vez de só cometê-lo de vez em quando) e não ser violento com os outros (em vez de ser só um pouquinho violento). Você correria o risco de transformar-se num moralista hipócrita, considerando-se uma pessoa especial a ser felicitada por seu "idealismo". Na verdade, isso seria o mesmo que se julgar especial por esforçar-se para acertar o resultado de uma soma. É claro que a aritmética perfeita é um "ideal", pois certamente cometeremos erros em algumas contas. Porém, não há nada de especialmente louvável em tentar obter o resultado correto de cada passo de uma soma. Seria pura estupidez não fazer essa tentativa, pois cada erro de cálculo vai lhe causar problemas para obter o resultado final. Da mesma forma, toda falha moral causará problemas, provavelmente para os outros, certamente para você. Ao falar de regras e obediência em vez de "ideais" e "idealismo", colaboramos muito para nos lembrar desse fato.
Vamos dar um passo além. Existem duas maneiras pelas quais a máquina humana pode quebrar. Uma delas é quando os indivíduos humanos se afastam uns dos outros ou colidem uns com os outros e prejudicam uns aos outros, traindo ou cometendo violência uns com os outros. A outra é quando as coisas vão mal dentro do próprio indivíduo — quando as diferentes partes que o compõem (suas faculdades, desejos etc.) dissociam-se ou conflitam umas com as outras. Pode-se fazer uma imagem clara do que estou falando se imaginarmos os seres humanos como uma frota de navios que navega em formação. A viagem só será bem-sucedida se, em primeiro lugar, os navios não se chocarem entre si e não entrarem uns no caminho dos outros; e, em segundo lugar, se cada navio estiver em boas condições de navegação, com suas máquinas em ordem. Aliás, não dá para ter uma das coisas sem a outra. Se os navios se chocarem, a frota não ficará em boas condições por muito tempo. Por outro lado, se os lemes estiverem com defeito, será difícil evitar as colisões. Se você preferir, pense na humanidade como uma orquestra que toca uma música. Para se ter um bom resultado, duas coisas são necessárias: cada um dos instrumentos deve estar afinado e cada músico deve tocar no momento certo para que os instrumentos combinem entre si.
Há uma coisa, porém, que ainda não levamos em conta. Não nos perguntamos qual o destino da frota, ou qual a música que a banda pretende tocar. Mesmo que os instrumentos estivessem todos afinados e todos tocassem no tempo correto, a execução não seria um sucesso se os músicos, tendo sido contratados para tocar música dançante, tocassem somente marchas fúnebres. E, por melhor que fosse a navegação da frota, a viagem não seria um sucesso se, querendo chegar a Nova York, aportasse em Calcutá.
A moral, então, parece englobar três fatores. O primeiro é a conduta leal e a harmonia entre os indivíduos. O segundo pode ser chamado de organização ou harmonização das coisas dentro de cada indivíduo. O terceiro é o objetivo geral da vida humana como um todo: qual a razão de ser do homem, qual o destino da frota de navios, qual música o maestro quer que a banda toque.
Você já deve ter notado que o homem moderno quase sempre pensa no primeiro desses fatores, esquecendo os outros dois. Quando as pessoas dizem nos jornais que estamos buscando um padrão moral cristão, quase sempre pensam na bondade e na justiça entre nações, classes e indivíduos; ou seja, referem-se apenas ao primeiro fator. Quando um homem, falando de um projeto seu, diz que ele "não pode estar errado, pois não fará mal a ninguém", também está se referindo somente ao primeiro fator. No seu modo de pensar, não importa como o navio está por dentro, desde que não colida com a embarcação ao lado. E, quando começamos a pensar sobre a moral, é muito natural partirmos do primeiro fator, que são as relações sociais. Para começar, os resultados de uma moralidade deturpada nesta esfera são muito evidentes e nos afetam todos os dias: a guerra e a miséria, as jornadas desumanas de trabalho, as mentiras e todos os tipos de trabalho malfeito. Além disso, enquanto ficamos circunscritos a esse primeiro fator, não há muito o que discutir sobre moralidade. Quase todos os povos de todos os tempos chegaram à conclusão (em tese) de que os seres humanos devem ser honestos, gentis e solícitos uns com os outros. Contudo, embora seja natural começar por aí, um pensamento moral que ficasse restrito a isso seria o mesmo que nada. Se não passarmos ao segundo fator - a organização interna de cada ser humano -, estaremos apenas nos enganando. De que vale dar instruções precisas de navegação aos barcos se eles não passam de embarcações velhas e enferrujadas, que não obedecem aos comandos? De que vale pôr no papel regras de conduta social se sabemos que, na verdade, nossa cobiça, covardia, destempero e vaidade vão nos impedir de cumpri-las? Não quero de maneira alguma dizer que não devemos pensar, e nos esforçar, para melhorar nosso sistema social e econômico. Quero apenas salientar que todo esse planejamento não passará de conversa fiada se não nos dermos conta de que só a coragem e o altruísmo dos indivíduos poderá fazer com que o sistema funcione de maneira apropriada. Seria fácil eliminar os tipos particulares de fraude e tirania que subsistem em nosso sistema atual; mas, enquanto os homens forem os mesmos trapaceiros e manda-chuvas de sempre, encontrarão novas formas de seguir jogando o mesmo jogo, mesmo num novo sistema. É impossível tornar o homem bom pela força da lei; e, sem homens bons, não pode haver uma boa sociedade. É por isso que temos de começar a pensar no segundo fator: a moral dentro de cada indivíduo.
Mas não penso que isso seja suficiente. Estamos chegando a um ponto da questão em que diferentes crenças a respeito do universo produzem formas diferentes de conduta. A primeira vista, pode parecer bastante razoável parar antes de entrar nessa questão, e só nos ocuparmos das partes da moral que são de consenso entre as pessoas sensatas. Mas podemos nos dar a esse luxo? Lembre-se de que a religião envolve uma série de juízos sobre os fatos, juízos que podem ser verdadeiros ou falsos. Caso sejam verdadeiros, as conclusões deles tiradas conduzem a frota da raça humana por um determinado trajeto; caso contrário, o destino será completamente diferente. Voltemos, por exemplo, à pessoa que diz que uma coisa não pode estar errada se não faz mal a outros seres humanos. Essa pessoa sabe muito bem que não deve danificar os outros navios do comboio; porém, pensa sinceramente que tudo o que fizer em seu próprio navio é da sua própria conta. Mas, para isso, não importa saber se o navio é de sua propriedade ou não? Não importa saber se eu sou, por assim dizer, o senhorio do meu próprio corpo, ou se sou somente o seu inquilino, responsável perante o verdadeiro proprietário? Se fui feito por outra pessoa, por alguém que tem os seus próprios desígnios, o fato é que tenho uma série de obrigações em relação a essa pessoa, obrigações que não existiriam se eu simplesmente pertencesse a mim mesmo. Além disso, o cristianismo assevera que todo indivíduo humano viverá eternamente, o que pode ser verdadeiro ou falso. Há várias coisas com as quais eu não me preocuparia se fosse viver apenas setenta anos, mas que me preocupam seriamente com a perspectiva da vida eterna. Talvez minha irritabilidade ou meu ciúme fiquem piores com o tempo - de forma tão gradual que a mudança seja imperceptível ao longo de sete décadas. No entanto, eles serão um verdadeiro inferno em um milhão de anos: aliás, se o cristianismo é verídico, "inferno" é o termo técnico exato para designar como as coisas serão então. A imortalidade também traz à tona outra diferença que, inclusive, está ligada à diferença entre totalitarismo e democracia. Se um homem não vive mais que setenta anos, um estado, uma nação ou uma civilização que pode durar mil anos são mais importantes do que ele. Porém, se o cristianismo é verdadeiro, o indivíduo não é apenas mais importante, mas incomparavelmente mais importante, pois sua vida não tem fim; comparada à sua vida, a duração de um estado ou civilização não passa de um simples instante.
Parece-nos, portanto, que, para pensar a respeito da moral, temos de levar em conta os três departamentos: as relações entre os homens; as coisas que se passam no interior de cada ser humano; e as relações entre o homem e o poder que o criou. Podemos todos cooperar no primeiro. Os desacordos começam com o segundo e se tornam mais sérios no terceiro. É no trato com o último que se evidenciam as principais diferenças entre cristãos e não-cristãos. No restante deste livro (postagens), assumirei o ponto de vista cristão e examinarei todo o cenário partindo do pressuposto da veracidade do cristianismo.
C.S.LEWIS
1. AS TRÊS PARTES DA MORAL
Conta-se a história de um garoto a quem perguntaram como achava que Deus era. O garoto respondeu que, pelo que era capaz de compreender, Deus era "o tipo de pessoa que está sempre xeretando a vida dos outros para ver se alguém está se divertindo e tentar acabar com isso". Infelizmente, parece-me que é essa a idéia que um número considerável de pessoas faz da palavra "Moral": algo que se intromete em nossa vida e nos impede de ter momentos agradáveis. Na realidade, as regras morais são como que instruções de uso da máquina chamada Homem. Toda regra moral existe para prevenir o colapso, a sobrecarga ou uma falha de funcionamento da máquina. E por isso que essas regras, no começo, parecem estar em constante conflito com nossas inclinações naturais. Quando estamos aprendendo a usar qualquer mecanismo, o instrutor vive dizendo "Não, não faça isso", porque existem diversas coisas que, embora pareçam muito naturais e até acertadas na forma de lidar com a máquina, na verdade não funcionam.
Certas pessoas preferem falar de "ideais" morais em vez de regras morais, e de "idealismo" moral em vez de obediência. Ora, é certo que a perfeição moral é um "ideal", na medida em que é inalcançável. Nesse sentido, toda perfeição é, para nós, seres humanos, um ideal. Não conseguimos dirigir perfeitamente um automóvel, jogar tênis perfeitamente ou desenhar uma linha perfeitamente reta. Num outro sentido, porém, é enganador dizer que a perfeição moral é um ideal. Quando um homem diz que certa mulher, casa, barco ou jardim é "seu ideal", não pretende (a menos que seja um tolo) que todos tenham o mesmo ideal. Nesses assuntos, temos o direito de ter gostos diferentes e, conseqüentemente, ideais diferentes. E perigoso, porém, dizer que um homem que se esforça para seguir a lei moral seja um homem de "altos ideais", pois isso pode nos dar a impressão de que a perfeição moral é um mero gosto pessoal dele e que o restante dos homens não teria o dever de procurar realizá-la. Esse erro seria desastroso. A conduta perfeita talvez seja tão inalcançável quanto a perfeita perícia ao volante, mas é um ideal necessário prescrito a todos os homens por causa da própria natureza da máquina humana, da mesma forma que a pilotagem perfeita é prescrita a todos os motoristas pela própria natureza dos automóveis. E seria ainda mais perigoso se você se considerasse uma pessoa de "altos ideais" só porque tenta não mentir (em vez de só contar mentirinhas ocasionais), não cometer adultério (em vez de só cometê-lo de vez em quando) e não ser violento com os outros (em vez de ser só um pouquinho violento). Você correria o risco de transformar-se num moralista hipócrita, considerando-se uma pessoa especial a ser felicitada por seu "idealismo". Na verdade, isso seria o mesmo que se julgar especial por esforçar-se para acertar o resultado de uma soma. É claro que a aritmética perfeita é um "ideal", pois certamente cometeremos erros em algumas contas. Porém, não há nada de especialmente louvável em tentar obter o resultado correto de cada passo de uma soma. Seria pura estupidez não fazer essa tentativa, pois cada erro de cálculo vai lhe causar problemas para obter o resultado final. Da mesma forma, toda falha moral causará problemas, provavelmente para os outros, certamente para você. Ao falar de regras e obediência em vez de "ideais" e "idealismo", colaboramos muito para nos lembrar desse fato.
Vamos dar um passo além. Existem duas maneiras pelas quais a máquina humana pode quebrar. Uma delas é quando os indivíduos humanos se afastam uns dos outros ou colidem uns com os outros e prejudicam uns aos outros, traindo ou cometendo violência uns com os outros. A outra é quando as coisas vão mal dentro do próprio indivíduo — quando as diferentes partes que o compõem (suas faculdades, desejos etc.) dissociam-se ou conflitam umas com as outras. Pode-se fazer uma imagem clara do que estou falando se imaginarmos os seres humanos como uma frota de navios que navega em formação. A viagem só será bem-sucedida se, em primeiro lugar, os navios não se chocarem entre si e não entrarem uns no caminho dos outros; e, em segundo lugar, se cada navio estiver em boas condições de navegação, com suas máquinas em ordem. Aliás, não dá para ter uma das coisas sem a outra. Se os navios se chocarem, a frota não ficará em boas condições por muito tempo. Por outro lado, se os lemes estiverem com defeito, será difícil evitar as colisões. Se você preferir, pense na humanidade como uma orquestra que toca uma música. Para se ter um bom resultado, duas coisas são necessárias: cada um dos instrumentos deve estar afinado e cada músico deve tocar no momento certo para que os instrumentos combinem entre si.
Há uma coisa, porém, que ainda não levamos em conta. Não nos perguntamos qual o destino da frota, ou qual a música que a banda pretende tocar. Mesmo que os instrumentos estivessem todos afinados e todos tocassem no tempo correto, a execução não seria um sucesso se os músicos, tendo sido contratados para tocar música dançante, tocassem somente marchas fúnebres. E, por melhor que fosse a navegação da frota, a viagem não seria um sucesso se, querendo chegar a Nova York, aportasse em Calcutá.
A moral, então, parece englobar três fatores. O primeiro é a conduta leal e a harmonia entre os indivíduos. O segundo pode ser chamado de organização ou harmonização das coisas dentro de cada indivíduo. O terceiro é o objetivo geral da vida humana como um todo: qual a razão de ser do homem, qual o destino da frota de navios, qual música o maestro quer que a banda toque.
Você já deve ter notado que o homem moderno quase sempre pensa no primeiro desses fatores, esquecendo os outros dois. Quando as pessoas dizem nos jornais que estamos buscando um padrão moral cristão, quase sempre pensam na bondade e na justiça entre nações, classes e indivíduos; ou seja, referem-se apenas ao primeiro fator. Quando um homem, falando de um projeto seu, diz que ele "não pode estar errado, pois não fará mal a ninguém", também está se referindo somente ao primeiro fator. No seu modo de pensar, não importa como o navio está por dentro, desde que não colida com a embarcação ao lado. E, quando começamos a pensar sobre a moral, é muito natural partirmos do primeiro fator, que são as relações sociais. Para começar, os resultados de uma moralidade deturpada nesta esfera são muito evidentes e nos afetam todos os dias: a guerra e a miséria, as jornadas desumanas de trabalho, as mentiras e todos os tipos de trabalho malfeito. Além disso, enquanto ficamos circunscritos a esse primeiro fator, não há muito o que discutir sobre moralidade. Quase todos os povos de todos os tempos chegaram à conclusão (em tese) de que os seres humanos devem ser honestos, gentis e solícitos uns com os outros. Contudo, embora seja natural começar por aí, um pensamento moral que ficasse restrito a isso seria o mesmo que nada. Se não passarmos ao segundo fator - a organização interna de cada ser humano -, estaremos apenas nos enganando. De que vale dar instruções precisas de navegação aos barcos se eles não passam de embarcações velhas e enferrujadas, que não obedecem aos comandos? De que vale pôr no papel regras de conduta social se sabemos que, na verdade, nossa cobiça, covardia, destempero e vaidade vão nos impedir de cumpri-las? Não quero de maneira alguma dizer que não devemos pensar, e nos esforçar, para melhorar nosso sistema social e econômico. Quero apenas salientar que todo esse planejamento não passará de conversa fiada se não nos dermos conta de que só a coragem e o altruísmo dos indivíduos poderá fazer com que o sistema funcione de maneira apropriada. Seria fácil eliminar os tipos particulares de fraude e tirania que subsistem em nosso sistema atual; mas, enquanto os homens forem os mesmos trapaceiros e manda-chuvas de sempre, encontrarão novas formas de seguir jogando o mesmo jogo, mesmo num novo sistema. É impossível tornar o homem bom pela força da lei; e, sem homens bons, não pode haver uma boa sociedade. É por isso que temos de começar a pensar no segundo fator: a moral dentro de cada indivíduo.
Mas não penso que isso seja suficiente. Estamos chegando a um ponto da questão em que diferentes crenças a respeito do universo produzem formas diferentes de conduta. A primeira vista, pode parecer bastante razoável parar antes de entrar nessa questão, e só nos ocuparmos das partes da moral que são de consenso entre as pessoas sensatas. Mas podemos nos dar a esse luxo? Lembre-se de que a religião envolve uma série de juízos sobre os fatos, juízos que podem ser verdadeiros ou falsos. Caso sejam verdadeiros, as conclusões deles tiradas conduzem a frota da raça humana por um determinado trajeto; caso contrário, o destino será completamente diferente. Voltemos, por exemplo, à pessoa que diz que uma coisa não pode estar errada se não faz mal a outros seres humanos. Essa pessoa sabe muito bem que não deve danificar os outros navios do comboio; porém, pensa sinceramente que tudo o que fizer em seu próprio navio é da sua própria conta. Mas, para isso, não importa saber se o navio é de sua propriedade ou não? Não importa saber se eu sou, por assim dizer, o senhorio do meu próprio corpo, ou se sou somente o seu inquilino, responsável perante o verdadeiro proprietário? Se fui feito por outra pessoa, por alguém que tem os seus próprios desígnios, o fato é que tenho uma série de obrigações em relação a essa pessoa, obrigações que não existiriam se eu simplesmente pertencesse a mim mesmo. Além disso, o cristianismo assevera que todo indivíduo humano viverá eternamente, o que pode ser verdadeiro ou falso. Há várias coisas com as quais eu não me preocuparia se fosse viver apenas setenta anos, mas que me preocupam seriamente com a perspectiva da vida eterna. Talvez minha irritabilidade ou meu ciúme fiquem piores com o tempo - de forma tão gradual que a mudança seja imperceptível ao longo de sete décadas. No entanto, eles serão um verdadeiro inferno em um milhão de anos: aliás, se o cristianismo é verídico, "inferno" é o termo técnico exato para designar como as coisas serão então. A imortalidade também traz à tona outra diferença que, inclusive, está ligada à diferença entre totalitarismo e democracia. Se um homem não vive mais que setenta anos, um estado, uma nação ou uma civilização que pode durar mil anos são mais importantes do que ele. Porém, se o cristianismo é verdadeiro, o indivíduo não é apenas mais importante, mas incomparavelmente mais importante, pois sua vida não tem fim; comparada à sua vida, a duração de um estado ou civilização não passa de um simples instante.
Parece-nos, portanto, que, para pensar a respeito da moral, temos de levar em conta os três departamentos: as relações entre os homens; as coisas que se passam no interior de cada ser humano; e as relações entre o homem e o poder que o criou. Podemos todos cooperar no primeiro. Os desacordos começam com o segundo e se tornam mais sérios no terceiro. É no trato com o último que se evidenciam as principais diferenças entre cristãos e não-cristãos. No restante deste livro (postagens), assumirei o ponto de vista cristão e examinarei todo o cenário partindo do pressuposto da veracidade do cristianismo.
C.S.LEWIS
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