sábado, setembro 18, 2010

CONDUTA CRISTÃ - 5. MORALIDADE SEXUAL

5. MORALIDADE SEXUAL
Consideremos agora a moralidade cristã no que diz respeito à questão do sexo, ou seja, o que os cristãos cha­mam de virtude da castidade. Não se deve confundir a regra cristã da castidade com a regra social da "modéstia", no sentido de pudor ou decência. A regra social do pudor estipula quais partes do corpo podem ser mostradas e quais assuntos podem ser abordados, e de que forma, de acordo com os costumes de determinado círculo so­cial. Logo, enquanto a regra da castidade é a mesma para todos os cristãos em todas as épocas, a regra do pudor muda. Uma moça das ilhas do Pacífico, praticamente nua, e uma dama vitoriana completamente coberta, po­dem ambas ser igualmente "modestas", pudicas e decentes de acordo com o padrão da sociedade em que vivem. Ambas, pelo que suas roupas nos dizem, podem ser igualmente castas (ou igualmente devassas). Parte do vocabulário que uma mulher casta usava nos tempos de Shakespeare só seria usado no século XIX por uma mulher completamente desinibida. Quando as pessoas transgridem a regra do pudor vigente no lugar e na épo­ca em que vivem, e o fazem para excitar o desejo sexual em si mesmas ou nos outros, cometem um pecado con­tra a castidade. Se, porém, a transgridem por ignorância ou descuido, sua única culpa é a da má educação. É mui­to freqüente que a regra seja transgredida a modo de desafio, para chocar ou causar embaraço nos outros. As pessoas que fazem isso não são necessariamente devas­sas, mas faltam com a caridade, pois é falta de caridade achar graça em incomodar os outros. Quanto a mim, não acho que um padrão de pudor extremamente rígido e exigente seja uma prova de castidade ou uma grande ajuda para que essa exista; por isso, considero um bom sinal o abrandamento e a simplificação dessa regra que se deu durante minha vida. O momento atual, entre­tanto, tem o inconveniente de que pessoas de idades e tipologias diferentes não reconhecem o mesmo padrão, de modo que não podemos saber em que pé estamos. Enquanto essa confusão durar, creio que as pessoas mais velhas, ou mais antiquadas, não devem julgar que os mais jovens ou "emancipados" estão corrompidos sem­pre que agem de forma despudorada (segundo o velho padrão). Em contrapartida, os mais jovens não devem chamar os mais velhos de moralistas ou puritanos só por­que não conseguem se adaptar facilmente ao novo pa­drão. O desejo sincero de pensar sempre o melhor do próximo e de tornar-lhe a vida mais confortável resol­verá a maior parte desses problemas.
A castidade é a menos popular das virtudes cristãs. Porém, não existe escapatória. A regra cristã é clara: "Ou o casamento, com fidelidade completa ao cônjuge, ou a abstinência total." Isso é tão difícil de aceitar, e tão con­trário a nossos instintos, que das duas, uma: ou o cristia­nismo está errado ou o nosso instinto sexual, tal como é hoje em dia, se encontra deturpado. E claro que, sen­do cristão, penso que foi o instinto que se deturpou.
Tenho, no entanto, outras razões para pensar assim. O objetivo biológico do sexo são os filhos, da mesma forma que o objetivo biológico da alimentação é a con­servação do corpo. Se comêssemos sempre que tivésse­mos vontade e na quantidade que desejássemos, é bem verdade que muitos comeriam demais, mas não extraor­dinariamente demais. Uma pessoa pode comer por duas, mas não por dez. O apetite pode sobrepujar um pou­co a necessidade biológica, mas não de forma comple­tamente desproporcional. Já um jovem saudável que fosse indulgente com o seu apetite sexual, e que a cada ato produzisse um bebê, em dez anos conseguiria facilmen­te povoar uma pequena aldeia. Tal apetite excederia a sua função de forma cômica e absurda.
Tomemos outro exemplo. É fácil juntar uma gran­de platéia para um espetáculo de strip-tease — para ver uma garota se despir no palco. Agora suponha que você vá a um país em que os teatros lotassem para assistir a outro tipo de espetáculo: o de um prato coberto cuja tampa fosse retirada lentamente, de modo que, logo an­tes do apagar das luzes, se revelasse seu conteúdo - uma costeleta de carneiro ou uma bela fatia de bacon. Você não julgaria haver algo de errado com o apetite desse povo por comida? Será que, em contrapartida, uma pes­soa criada em outro ambiente também não julgaria er­rado o instinto sexual entre nós?
Um crítico disse que, se encontrasse um país onde se fizessem espetáculos de strip-tease gastronômico, con­cluiria que o povo desse país estava faminto. O que ele quis dizer, evidentemente, é que o strip-tease e coisas afins não resultam da corrupção sexual, mas da inanição se­xual. Concordo com ele que, estivesse eu num país em que o strip-tease de uma costeleta de carneiro fosse po­pular, uma das explicações que me ocorreria seria a fome. Mas, para comprovar essa hipótese, o passo seguinte se­ria descobrir se o povo desse país consome muita ou pouca comida. Caso se demonstrasse que muitos alimentos são consumidos, teríamos de abandonar a hipótese de inanição e tentar pensar em outra. Da mesma maneira, antes de aceitar a inanição sexual como causa do strip-tease, temos de procurar sinais de que, em nossa época, as pessoas praticam mais a abstinência sexual do que nas épocas em que o strip-tease era desconhecido. Esses si­nais, porém, não existem. Os métodos anticoncepcio­nais mais do que nunca tornaram a libertinagem sexual menos custosa dentro do casamento e bem mais segu­ra fora dele. A opinião pública nunca foi tão pouco hos­til às uniões ilícitas, e mesmo às perversões, desde a épo­ca do paganismo. Não é também a hipótese de "inani­ção" a única que pode nos ocorrer. Todos sabem que o apetite sexual, como qualquer outro apetite, cresce quan­do é satisfeito. Os homens famintos pensam muito em comida, mas os glutões também. Tanto os saciados quan­to os famintos gostam de estímulos novos.
Um terceiro ponto. Não existe muita gente que queira comer coisas que não são alimentos ou que goste de usar a comida em outras coisas que não a alimen­tação. Em outras palavras, as perversões do apetite ali­mentar são raras. As perversões do instinto sexual, po­rém, são numerosas, difíceis de curar e assustadoras. Des­culpe-me por descer a esses detalhes, mas tenho de fazê-lo. Tenho de fazê-lo porque, há vinte anos, temos sido obrigados a engolir diariamente uma série enorme de men­tiras bem contadas sobre sexo. Tivemos de ouvir, ad nauseam, que o desejo sexual não difere de nenhum outro desejo natural, e que, se abandonarmos a tola e anti­quada idéia vitoriana de tecer uma cortina de silêncio em torno dele, tudo neste jardim será maravilhoso. No mo­mento em que examinamos os fatos e nos distanciamos da propaganda, vemos que a coisa não é bem assim.
Dizem que o sexo se tornou um problema grave porque não se falava sobre o assunto. Nos últimos vin­te anos, não foi isso que aconteceu. Todo o dia se fala sobre o assunto, mas ele continua sendo um problema. Se o silêncio fosse a causa do problema, a conversa seria a solução. Mas não foi. Acho que é exatamente o con­trário. Acredito que a raça humana só passou a tratar do tema com discrição porque ele já tinha se tornado um problema. Os modernos sempre dizem que "o sexo não é algo de que devemos nos envergonhar". Com isso, podem estar querendo dizer duas coisas. Uma de­las é que "não há nada de errado no fato de a raça hu­mana se reproduzir de um determinado modo, nem no fato de esse modo gerar prazer". Se é isso o que têm em mente, estão cobertos de razão. O cristianismo diz a mes­ma coisa. O problema não está nem na coisa em si, nem no prazer. Os velhos pregadores cristãos diziam que, se o homem não tivesse sofrido a queda, o prazer sexual não seria menor do que é hoje, mas maior. Bem sei que alguns cristãos de mente tacanha dizem por aí que o cristianismo julga o sexo, o corpo e o prazer como coi­sas intrinsecamente más. Mas estão errados. O cristia­nismo é praticamente a única entre as grandes religiões que aprova por completo o corpo — que acredita que a matéria é uma coisa boa, que o próprio Deus cornou a forma humana e que um novo tipo de corpo nos será dado no Paraíso e será parte essencial da nossa felicidade, beleza e energia. O cristianismo exaltou o casamento mais que qualquer outra religião; e quase todos os gran­des poemas de amor foram compostos por cristãos. Se alguém disser que o sexo, em si, é algo mau, o cristia­nismo refuta essa afirmativa instantaneamente. Mas é claro que, quando as pessoas dizem "o sexo não é algo de que devemos nos envergonhar", elas podem estar que­rendo dizer que "o estado em que se encontra nosso ins­tinto sexual não é algo de que devemos sentir vergonha". Se é isso que querem dizer, penso que estão erra­das. Penso que temos todos os motivos do mundo para sentir vergonha. Não há nada de vergonhoso em apre­ciar o alimento, mas deveríamos nos cobrir de vergo­nha se metade das pessoas fizesse do alimento o maior interesse de sua vida e passasse os dias a espiar figuras de pratos, com água na boca e estalando os lábios. Não digo que você ou eu sejamos individualmente responsáveis pela situação atual. Nossos ancestrais nos legaram organismos que, sob este aspecto, são pervertidos; e cres­cemos cercados de propaganda a favor da libertinagem. Existem pessoas que querem manter o nosso instinto sexual em chamas para lucrar com ele; afinal de contas, não há dúvida de que um homem obcecado é um ho­mem com baixa resistência à publicidade. Deus conhe­ce nossa situação; ele não nos julgará como se não ti­véssemos dificuldades a superar. O que realmente im­porta é a sinceridade e a firma vontade de superá-las.
Para sermos curados, temos de querer ser curados. Todo aquele que pede socorro será atendido; porém, para o homem moderno, até mesmo esse desejo sin­cero é difícil de ter. E fácil pensar que queremos algo quando na verdade não o queremos. Um cristão famoso, de tempos antigos, disse que, quando era jovem, implo­rava constantemente pela castidade; anos depois, se deu conta de que, quando seus lábios pronunciavam "ó Se­nhor, fazei-me casto", seu coração acrescentava secreta­mente as palavras: "Mas, por favor, que não seja agora." Isso também pode acontecer nas preces em que pedi­mos outras virtudes; mas há três motivos que tornam especialmente difícil desejar — quanto mais alcançar - a perfeita castidade.
Em primeiro lugar, nossa natureza pervertida, os de­mônios que nos tentam e a propaganda a favor da luxúria associam-se para nos fazer sentir que os desejos aos quais resistimos são tão "naturais", "saudáveis" e ra­zoáveis que essa resistência é quase uma perversidade e uma anomalia. Cartaz após cartaz, filme após filme, ro­mance após romance associam a idéia da libertinagem sexual com as idéias de saúde, normalidade, juventude, franqueza e bom humor. Essa associação é uma menti­ra. Como toda mentira poderosa, é baseada numa ver­dade - a verdade reconhecida acima de que o sexo (à parte os excessos e as obsessões que cresceram ao seu re­dor) é em si "normal", "saudável" etc. A mentira con­siste em sugerir que qualquer ato sexual que você se sinta tentado a desempenhar a qualquer momento seja também saudável e normal. Isso é estapafúrdio sob qual­quer ponto de vista concebível, mesmo sem levar em conta o cristianismo. A submissão a todos os nossos de­sejos obviamente leva à impotência, à doença, à inveja, à mentira, à dissimulação, a tudo, enfim, que é contrário à saúde, ao bom humor e à franqueza. Para qualquer tipo de felicidade, mesmo neste mundo, é necessário comedimento. Logo, a afirmação de que qualquer de­sejo é saudável e razoável só porque é forte não signifi­ca coisa alguma. Todo homem são e civilizado deve ter um conjunto de princípios pelos quais rejeita alguns de­sejos e admite outros. Um homem se baseia em princí­pios cristãos, outro se baseia em princípios de higiene, e outro, ainda, em princípios sociológicos. O verdadei­ro conflito não é o do cristianismo contra a "natureza", mas dos princípios cristãos contra outros princípios de controle da "natureza". A "natureza" (no sentido de um desejo natural) terá de ser controlada de um jeito ou de outro, a não ser que queiramos arruinar nossa vida. E bem verdade que os princípios cristãos são mais rígidos que os outros; no entanto, acreditamos que, para obe­decer-lhes, você poderá contar com uma ajuda que não terá para obedecer aos outros.
Em segundo lugar, muitas pessoas se sentem desen­corajadas de tentar seriamente seguir a castidade cristã porque a consideram impossível (mesmo antes de ten­tar). Porém, quando uma coisa precisa ser tentada, não se deve pensar se ela é possível ou impossível. Em face de uma pergunta optativa numa prova, a pessoa deve pen­sar se é capaz de respondê-la ou não; em face de uma pergunta obrigatória, a pessoa deve fazer o melhor que puder. Você poderá somar alguns pontos mesmo com uma resposta imperfeita, mas não somará ponto caso se abstenha de responder. Isso não vale apenas para uma prova, mas também para a guerra, para o alpinismo, para aprender a patinar, a nadar e a andar de bicicleta. Até para abotoar um colarinho duro com os dedos enregelados, as pessoas conseguem fazer o que antes pare­cia impossível. O homem é capaz de prodígios quando se vê obrigado a fazê-los.
Podemos ter certeza de que a castidade perfeita — como a caridade perfeita — não será alcançada pelo mero esforço humano. Você tem de pedir a ajuda de Deus. Mesmo depois de pedir, poderá ter a impressão de que a ajuda não vem, ou vem em dose menor que a neces­sária. Não se preocupe. Depois de cada fracasso, levan­te-se e tente de novo. Muitas vezes, a primeira ajuda de Deus não é a própria virtude, mas a força para tentar de novo. Por mais importante que seja a castidade (ou a coragem, a veracidade ou qualquer outra virtude), esse processo de treinamento dos hábitos da alma é ainda mais valioso. Ele cura nossas ilusões a respeito de nós mesmos e nos ensina a confiar em Deus. Aprende­mos, por um lado, que não podemos confiar em nós mesmos nem em nossos melhores momentos; e, por ou­tro, que não devemos nos desesperar nem mesmo nos piores, pois nossos fracassos são perdoados. A única ati­tude fatal é se dar por satisfeito com qualquer coisa que não a perfeição.
Em terceiro lugar, as pessoas muitas vezes não en­tendem o que a psicologia quer dizer com "repressão". Ela nos ensinou que o sexo "reprimido" é perigoso. Nes­se caso, porém, "reprimido" é um termo técnico: não significa "suprimido" no sentido de "negado" ou "proi­bido". Um desejo ou pensamento reprimido é o que foi jogado para o fundo do subconsciente (em geral na infância) e só pode surgir na mente de forma disfarçada ou irreconhecível. Ao paciente, a sexualidade reprimi­da não parece nem mesmo ter relação com a sexualidade. Quando um adolescente ou um adulto se empenha em resistir a um desejo consciente, não está lidando com a repressão nem corre o risco de a estar criando. Pelo con­trário, os que tentam seriamente ser castos têm mais consciência de sua sexualidade e logo passam a conhe­cê-la melhor que qualquer outra pessoa. Acabam co­nhecendo seus desejos como Wellington conhecia Napoleão ou Sherlock Holmes conhecia Moriarty (Professor Moriarty, o maior inimigo de Sherlock Holmes nas histórias criadas por Conan Doyle); como um apanhador de ratos conhece ratos ou como um en­canador conhece um cano com vazamento. A virtude - mesmo o esforço para alcançá-la — traz a luz; a liber­tinagem traz apenas brumas.
Para encerrar, apesar de eu ter falado bastante a respeito de sexo, quero deixar tão claro quanto possível que o centro da moralidade cristã não está aí.
Se alguém pensa que os cristãos consideram a falta de castidade o vício supremo, essa pessoa está redondamente enganada. Os pecados da carne são maus, mas, dos pecados, são os menos graves. Todos os prazeres mais tetríveis são de natureza puramente espiritual: o prazer de provar que o próximo está errado, de tiranizar, de tratar os outros com desdém e superioridade, de estragar o prazer, de difamar. São os prazeres do poder e do ódio. Isso por­que existem duas coisas dentro de mim que competem com o ser humano em que devo tentar me tornar. São elas o ser animal e o ser diabólico. O diabólico é o pior dos dois. E por isso que um moralista frio e pretensamente virtuoso que vai regularmente à igreja pode es­tar bem mais perto do inferno que uma prostituta. E claro, porém, que é melhor não ser nenhum dos dois.

C.S.LEWIS

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