sábado, setembro 11, 2010

CONDUTA CRISTÃ - 3. MORALIDADE SOCIAL

A primeira coisa que devemos esclarecer a respeito da moralidade cristã, na relação de um homem com o outro, é que nesse departamento Cristo não veio pre­gar nenhuma nova moral. A Regra Áurea do Novo Tes­tamento (faça aos outros o que gostaria que fizessem para você) é o resumo do que todos, no íntimo, sempre re­conheceram como correto. Os grandes mestres da mo­ral nunca criam morais novas; são os charlatões que fa­zem isso. Como dizia o dr. Johnson (Samuel Johnson (1709-1784), crítico literário, ensaísta e poeta inglês), "deve-se antes refres­car a memória das pessoas a respeito do que já sabem do que instruí-las com novidades". A verdadeira função do mestre moral é a de sempre nos trazer de volta, dia após dia, aos velhos e simples princípios que tanto nos esforçamos para não ver. E a mesma coisa que levar um cavalo repetidamente para junto da cerca que ele se recusa a saltar, ou de insistir todo o dia com a criança so­bre os pontos da matéria que ela se esquiva de estudar.
A segunda coisa que devemos esclarecer é que o cristianismo nunca possuiu, nem professou possuir, um programa detalhado para aplicar o "faça aos outros o que gostaria que fizessem para você" a uma determina­da sociedade ou a um momento particular. Nem poderia ser diferente. Ele se dirige a todos os homens de todos os tempos; e um programa específico que fosse cabível para um lugar ou uma época não o seria para outros. E, de qualquer modo, é assim que o cristianismo fun­ciona. Quando nos manda alimentar os famintos, não nos dá aulas de culinária. Quando nos exorta a ler as Es­crituras, não ministra aulas de hebraico ou de grego, nem mesmo de gramática inglesa. Nunca teve a intenção de substituir ou destituir as artes e ciências profanas: tem, antes, a função de um diretor que as destina às suas fun­ções corretas e lhes infunde a energia de uma vida nova na medida em que elas se colocam à sua disposição.
As pessoas pedem: "A Igreja deve tomar a dianteira." Isso é verdade se for entendido da maneira correta, mas, caso contrário, não. Por "Igreja" deve-se entender todo o corpo de cristãos praticantes. E, quando dizem que a Igreja deve tomar a dianteira, devem querer dizer com isso que alguns cristãos - os que possuem o talento apro­priado - devem se tornar economistas ou estadistas, e que todos os estadistas e economistas devem ser cristãos e esforçar-se na política ou na economia para pôr em prática o "faça aos outros o que gostaria que fizessem para você". Se isso se tornasse realidade, e se nós, tercei­ros, estivéssemos dispostos a aceitar o fato, encontraría­mos soluções cristãs para nossos problemas sociais com bastante rapidez. E claro, porém, que, quando certas pessoas pedem que a Igreja tome a dianteira, querem mesmo é que a liderança estabeleça um programa po­lítico, o que é tolice. A liderança, dentro da Igreja, é composta pelas pessoas que foram especialmente trei­nadas e destacadas para cuidar dos nossos assuntos en­quanto criaturas que viverão para sempre; e estamos pe­dindo que cumpram uma função diferente, para a qual não foram treinadas. Essa função cabe a nós, leigos. A aplicação de princípios cristãos aos sindicatos ou às es­colas, por exemplo, deve vir de nós, sindicalistas e educa­dores cristãos, do mesmo modo que a literatura cristã deve ser feita por romancistas e dramaturgos cristãos, e não por um concilio de bispos, reunidos para escrever peças e romances no seu tempo livre.
Do mesmo modo, o Novo Testamento, sem entrar em detalhes, nos pinta um quadro bastante claro do que seria uma sociedade plenamente cristã. Talvez exija de nós mais do que estamos dispostos a dar. Informa-nos que, nessa sociedade, não há lugar para parasitas ou pas­sageiros clandestinos: aquele que não trabalhar não deve comer. Cada qual deve trabalhar com suas próprias mãos e, mais ainda, o trabalho de cada qual deve dar frutos bons: não se devem produzir artigos tolos e supérfluos, nem, muito menos, uma publicidade ainda mais tola para nos persuadir a adquiri-los. Não há lugar para a ostentação, para a fanfarronice nem para quem queira empinar o nariz. Nesse sentido, uma sociedade cristã seria o que se chama hoje em dia "de esquerda". Por ou­tro lado, ela insiste na obediência — na obediência (acom­panhada de sinais exteriores de reverência) de todos nós para com os magistrados legitimamente constituídos, dos filhos para com os pais e (acho que esta parte não será muito popular) das esposas para com os maridos. Em terceiro lugar, essa é uma sociedade alegre: uma so­ciedade repleta de canto e de regozijo, que não dá valor nem à preocupação nem à ansiedade. A cortesia é uma das virtudes cristãs, e o Novo Testamento abomina as pes­soas abelhudas, que vivem fiscalizando os outros.
Se existisse uma sociedade assim e nós a visitássemos, creio que sairíamos de lá com uma impressão curiosa. Teríamos a sensação de que sua vida econômica seria bastante socialista e, nesse sentido, "avançada", mas sua vida familiar e seu código de boas maneiras seriam, ao contrário, bastante antiquados — talvez até cerimoniosos e aristocráticos. Cada um de nós apreciaria um aspec­to dela, mas poucos a apreciariam por inteiro. Isso é o que se deve esperar de um cristianismo como projeto integral para o mecanismo da sociedade humana. Cada um de nós se desviou desse projeto integral de forma diferente, e pretende que as modificações nele inseridas substituam o próprio projeto. Você vai sempre encon­trar a mesma situação em tudo o que é verdadeiramente cristão: todos se sentem atraídos por um aspecto disso e querem pegar só esse aspecto, deixando de lado o resto. Esse é o motivo pelo qual não conseguimos avançar, e também explica por que pessoas que lutam por coisas opostas dizem estar lutando pelo cristianismo.
Passo para outra questão. Há um conselho, dado pe­los gregos pagãos da Antigüidade, pelos judeus do An­tigo Testamento e pelos grandes mestres cristãos da Ida­de Média, que foi completamente desobedecido pelo sistema econômico moderno. Todos eles disseram que não se deve emprestar dinheiro a juros; e o empréstimo a juros — o que chamamos de investimentos — é a base de todo o nosso sistema. Não se pode, no entanto, con­cluir com absoluta certeza que estejamos errados. Alguns dizem que, quando Moisés, Aristóteles e os cristãos con­cordaram em proibir o juro (ou a "usura", como diriam), eles não podiam prever as sociedades acionárias e pen­savam apenas no agiota particular, e que, portanto, não devemos nos preocupar com o que disseram. Essa é uma questão sobre a qual não cabe a mim opinar. Não sou economista e simplesmente não sei se foi o sistema de investimentos o responsável pelo estado de coisas em que nos encontramos. Por isso é que precisamos de eco­nomistas cristãos. Entretanto, eu não estaria sendo ho­nesto se não dissesse que três grandes civilizações con­cordaram (pelo menos é o que parece à primeira vista) em condenar o próprio fundamento em que se baseia toda a nossa vida.
Mais uma coisa a dizer e termino. No trecho do Novo Testamento que diz que todos devem trabalhar, ele dá uma razão para isso — "a fim de ter algo a dar para os necessitados". A caridade - dar para os pobres - é um elemento essencial da moralidade cristã: na assustadora parábola das ovelhas e dos cabritos, ela parece ser a ques­tão da qual depende tudo o mais. Hoje em dia, certas pessoas dizem que a caridade não é mais necessária e que, em vez de darmos para os pobres, deveríamos criar uma sociedade em que não existissem pobres. Elas não deixam de ter certa razão no que se refere à construção de uma sociedade assim, mas quem tira disso a conclusão de que, nesse meio tempo, pode parar de doar, se afas­tou de toda a moralidade cristã. Não acredito que alguém possa estabelecer o quanto cada um deve dar. Creio que a única regra segura é dar mais do que nos sobra. Em outras palavras, se nossos gastos com conforto, bens su­pérfluos, diversão etc. se igualam ao do padrão dos que ganham o mesmo que nós, provavelmente não estamos dando o suficiente. Se a caridade que fazemos não pesa pelo menos um pouco em nosso bolso, ela está pequena demais. E preciso que haja coisas que gostaríamos de fazer e não podemos por causa de nossos gastos com caridade. Estou falando de "caridade" no sentido comum da palavra. Os casos particulares que afetam parentes, amigos, vizinhos ou empregados, de que Deus, por as­sim dizer, nos força a tomar conhecimento, exigem mui­to mais que isso: podem inclusive nos obrigar a pôr em risco nossa própria situação. Para muitos de nós, o gran­de obstáculo à caridade não está num estilo de vida luxuo­so ou no desejo de mais prosperidade, mas no medo — na insegurança quanto ao futuro. Temos de saber que esse medo é uma tentação. As vezes, também o orgulho atra­palha a caridade; somos tentados a gastar mais do que devíamos em formas vistosas de generosidade (gorjetas, hospitalidade) e menos com aqueles que realmente ne­cessitam do nosso auxílio.
Antes de terminar, farei uma conjectura sobre como este capítulo pode ter afetado o leitor. Meu palpite é que deixei alguns esquerdistas furiosos por não ter ido mais longe na direção em que gostariam que eu fosse, e que também deixei com raiva as pessoas de orienta­ção política oposta por ter ido longe demais. Se isso é ver­dade, fica posto em evidência o verdadeiro empecilho para a concepção de um projeto de sociedade cristã. Muitos não examinam o cristianismo para descobrir como ele realmente é: sondam-no na esperança de en­contrar nele apoio para os pontos de vista de seu par­tido político. Buscamos um aliado quando nos é ofere­cido um Mestre - ou um Juiz. Não sou exceção a essa regra. Há trechos deste capítulo que eu gostaria de ter omitido, o que não deixa de ser uma demonstração de que nada de bom pode nascer destes colóquios se não nos decidirmos a trilhar o caminho mais comprido. A so­ciedade cristã só virá quando a maioria das pessoas a qui­ser, e ninguém pode querê-la se não for plenamente cristão, Posso repetir "faça aos outros o que gostaria que fizessem para você" até cansar, mas não conseguirei vi­ver assim se não amar ao próximo como a mim mes­mo; só poderei aprender esse amor quando aprender a amar a Deus; e só aprenderei a amá-lo quando apren­der a obedecê-lo. E assim, como eu já tinha dito, somos conduzidos a um aspecto mais interior da questão — saímos da problemática social e entramos na problemá­tica religiosa. O caminho mais longo é o mais curto para chegar em casa.

C.S.LEWIS

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