6. O CASAMENTO CRISTÃO
O capítulo anterior foi quase todo negativo. Nele discuti o que há de errado com o impulso sexual no homem, mas falei muito pouco sobre seu funcionamento correto - em outras palavras, sobre o casamento cristão. Há duas razões pelas quais não quis abordar o tema do casamento. A primeira é que a doutrina cristã sobre o assunto é extremamente impopular. A segunda é que nunca fui casado, e, portanto, não posso falar sobre ele por experiência própria. Apesar disso, sinto que não posso deixar este assunto de lado num sumário da moral cristã.
A idéia cristã de casamento se baseia nas palavras de Cristo de que o homem e a mulher devem ser considerados um único organismo - tal é o sentido que as palavras "uma só carne" teriam numa língua moderna. Os cristãos acreditam que, quando disse isso, ele não estava expressando um sentimento, mas afirmando um fato — da mesma forma que expressa um fato quem diz que o trinco e a chave são um único mecanismo, ou que o violino e o arco formam um único instrumento musical. O inventor da máquina humana queria nos dizer que as duas metades desta, o macho e a fêmea, foram feitas para combinar-se aos pares, não simplesmente na esfera sexual, mas em todas as esferas. A monstruosidade da relação sexual fora do casamento é que, cedendo a ela, tenta-se isolar um tipo de união (a sexual) de todos os outros tipos de união que deveriam acompanhá-la para compor a união total. A atitude cristã não toma como errada a existência de prazer no sexo, como não considera errado o prazer que temos quando nos alimentamos. O erro está em querer isolar esse prazer e tentar buscá-lo por si mesmo, da mesma maneira que não se deve buscar os prazeres do paladar sem engolir e digerir a comida, apenas mastigando-a e cuspindo-a.
Em conseqüência, o cristianismo ensina que o casamento deve durar a vida toda. Neste ponto, é claro que existem diferenças entre as diversas Igrejas: algumas não admitem o divórcio em hipótese alguma; outras o admitem com relutância em casos específicos. É uma grande lástima que os cristãos divirjam quanto a essa questão; para um leigo, porém, o fato a notar é que, no que diz respeito ao casamento, todas as Igrejas concordam muito mais umas com as outras do que concordam com o que vem do mundo exterior. Todas encaram o divórcio como se fosse algo que cortasse ao meio um organismo vivo, como um tipo de cirurgia. Algumas acham que essa cirurgia é tão violenta que não deve ser feita de forma alguma. Outras a admitem como um recurso desesperado em casos extremos. Todas asseveram que o divórcio se parece mais com a amputação das pernas do corpo do que com a dissolução de uma sociedade comercial ou mesmo com o ato de deserção de um soldado. O que todas elas repudiam é a visão moderna de que o divórcio é simplesmente um reajustamento de parceiros, a ser feito sempre que as pessoas não se sentem mais apaixonadas uma pela outra, ou quando uma delas se apaixona por outra pessoa.
Antes de analisar essa visão moderna e sua relação com a castidade, não devemos deixar de considerar sua relação com outra virtude - a saber, a justiça. A justiça, como eu disse antes, inclui a fidelidade à própria palavra. Todos os que se casaram na igreja fizeram a promessa pública e solene de permanecer unidos até a morte. O dever de cumprir essa promessa não tem nenhum vínculo especial com a moralidade sexual: ela está em pé de igualdade com qualquer outra promessa. Se, como as pessoas hoje em dia insistem em dizer, o impulso sexual é igual a todos os outros impulsos, então deve ser tratado em pé de igualdade com eles. Assim como o gozo de todo e qualquer impulso é controlado por nossas promessas, assim deve ser o gozo do impulso sexual. No entanto, se, segundo penso, ele não é igual a nossos demais impulsos, mas encontra-se morbidamente inflamado, devemos ter mais cautela para que ele não nos leve à desonestidade.
Certas pessoas podem retrucar dizendo que consideram a promessa feita na igreja uma simples formalidade, a qual nunca tencionaram cumprir. A quem, então, pretendiam enganar quando fizeram tal promessa? A Deus? Isso não é nada sensato. A si mesmas? Isso não é muito mais sensato que a alternativa anterior. Enganar a noiva, o noivo, os sogros? Isso é traição. É mais freqüente, na minha opinião, o casal (ou um deles) querer enganar o público. Quer a respeitabilidade que vem do casamento sem ter de pagar por isso: ou seja, são impostores, são enganadores. Se essas pessoas são desonestas e não se preocupam com isso, não tenho nada a lhes dizer. Quem poderia adverti-las a seguir o nobre, mas penoso, dever da castidade, se elas não pretendem nem mesmo ser honestas? Caso recobrassem a razão, a própria promessa feita as constrangeria. Tudo isso, como você pode notar, está circunscrito ao âmbito da justiça, e não da castidade. Se as pessoas não acreditam em casamento para sempre, talvez seja melhor viver juntas sem estar casadas que fazer uma promessa que não pretendem cumprir. É claro que, ao viver juntas sem estar unidas pelo matrimônio, elas são culpadas de fornicação (sob o ponto de vista cristão). Uma falta, porém, não conserta a outra: a falta de castidade não é minorada quando a ela se acrescenta o perjúrio.
A idéia de que "estar enamorado" é o único motivo válido para permanecer casado é totalmente contrária à idéia do matrimônio como um contrato ou mesmo como uma promessa, Se tudo se resume ao amor, o ato da promessa nada lhe acrescenta; e, assim, nem deveria ser feito. Uma coisa curiosa é que os próprios amantes, enquanto permanecem apaixonados, sabem disso muito mais que os que só falam de amor. Como observou Chesterton (Gilbert Keith Chesterton (1874-1936), escritor cristão inglês.), os apaixonados têm a tendência natural de fazer promessas um ao outro. As canções de amor do mundo inteiro estão repletas de juras de fidelidade eterna. A lei cristã não exige do amor algo que é alheio à sua natureza: exige apenas que os amantes levem a sério algo que a própria paixão os impele a fazer.
E é evidente que a promessa de ser fiel para sempre, que fiz quando estava apaixonado e porque o estava, deve ser cumprida mesmo que deixe de estar. A promessa diz respeito a ações, a coisas que posso fazer: ninguém pode fazer a promessa de ter um determinado sentimento para sempre. Seria o mesmo que prometer nunca mais ter dor de cabeça ou nunca mais ter fome. Pode-se perguntar, no entanto, qual o sentido de manter unidas duas pessoas que não se amam mais. Existem várias razões sociais bem fundamentadas para tanto: dar um lar para os filhos, proteger a mulher (que provavelmente sacrificou a carreira pelo casamento) de ser trocada por outra quando o marido se cansar dela. Existe, no entanto, um outro motivo do qual estou bastante convencido, mesmo que o julgue difícil de explicar.
E difícil porque tanta gente não consegue se dar conta de que, mesmo que "B" seja melhor que "C", talvez "A" seja melhor que ambos. As pessoas gostam de raciocinar com os termos "bom" e "mau", não com os termos "bom", "melhor" e "o melhor de todos", e "ruim", "pior" e "o pior de todos". Elas perguntam se você julga o patriotismo uma coisa boa; se você responde que ele é muito melhor que o egoísmo dos indivíduos, mas bastante inferior à caridade universal, e que deve ceder lugar a esta sempre que os dois estiverem em conflito, elas acham sua resposta evasiva. Perguntam o que você acha dos duelos. Se você responde que é muito melhor um homem perdoar o próximo que duelar com ele, mas que o duelo pode ser uma alternativa melhor que uma inimizade eterna, expressa no esforço secreto de causar a ruína do oponente, elas se queixam de que você não ofereceu uma resposta franca e direta. Espero que ninguém cometa o mesmo erro com o que tenho a dizer agora. O que chamamos de "estar apaixonado" é um estado maravilhoso e, sob diversos aspectos, benéfico para nós. Ajuda-nos a ser mais generosos e corajosos, abre nossos olhos não apenas para a beleza do objeto amado, mas para toda a beleza, e subordina (especialmente no início) nossa sexualidade animal; nesse sentido, o amor é o grande subjugador do desejo. Ninguém que tenha o uso perfeito da razão negaria que estar apaixonado é melhor que a sensualidade ordinária ou o frio egocentrismo. Mas, como eu disse antes, "a coisa mais perigosa que podemos fazer é tomar um certo impulso de nossa natureza como padrão a ser seguido custe o que custar". Estar apaixonado é muito bom, mas não é a melhor coisa do mundo. Existem muitas coisas abaixo, mas também muitas outras acima disso. A paixão amorosa não pode ser a base de uma vida inteira. É um sentimento nobre, mas, mesmo assim, é apenas um sentimento. Não podemos nos fiar em que um sentimento vá conservar para sempre sua intensidade total, ou mesmo que vá perdurar. O conhecimento perdura, como também os princípios e os hábitos, mas os sentimentos vêm e vão.
E, o que quer que as pessoas digam, a verdade é que o estado de paixão amorosa normalmente não dura. Se o velho final dos contos de fadas: "E viveram felizes para sempre", quisesse dizer que "pelos cinqüenta anos seguintes sentiram-se atraídos um pelo outro como no dia anterior ao casamento", estaria se referindo a algo que não acontece na realidade, que não pode acontecer e que, mesmo que pudesse, seria pouquíssimo recomendável. Quem conseguiria viver nesse estado de excitação mesmo por cinco anos? Que seria do trabalho, do apetite, do sono, das amizades? E claro, porém, que o fim da paixão amorosa não significa o fim do amor. O amor nesse segundo sentido - distinto da "paixão amorosa" - não é um mero sentimento. É uma unidade profunda, mantida pela vontade e deliberadamente reforçada pelo hábito; é fortalecida ainda (no casamento cristão) pela graça que ambos os cônjuges pedem a Deus e dele recebem. Eles podem fruir desse amor um pelo outro mesmo nos momentos em que se desgostam, da mesma forma que amamos a nós mesmos mesmo quando não gostamos da nossa pessoa. Conseguem manter vivo esse amor mesmo nas situações em que, caso se descuidassem, poderiam ficar "apaixonados" por outra pessoa. Foi a "paixão amorosa" que primeiro os moveu a jurar fidelidade recíproca. O amor sereno permite que cumpram o juramento. E através desse amor que a máquina do casamento funciona: a paixão amorosa foi a fagulha que a pôs em funcionamento.
Se você discorda de mim, é claro que vai dizer: "Ele não sabe do que está falando. Ele nem é casado." Talvez você tenha razão. Antes de dizer isso, porém, tome o cuidado de embasar seu julgamento nas coisas que você conhece por experiência pessoal ou pela observação de seus amigos, e não em idéias derivadas de romances ou de filmes. Isso não é tão fácil de fazer quanto as pessoas pensam. Nossa experiência é preenchida pelas cores dos livros, peças de teatro e filmes do cinema, e é necessário ter paciência para delas desentranhar e para separar o que aprendemos da vida por nós mesmos.
As pessoas tiram dos livros a idéia de que, se você casou com a pessoa certa, viverá "apaixonado" para sempre. Como resultado, quando se dão conta de que não é isso o que ocorre, chegam à conclusão de que cometeram um erro, o que lhes daria o direito de mudar - não percebem que, da mesma forma que a antiga paixão se desvaneceu, a nova também se desvanecerá. Nesse departamento da vida, como em qualquer outro, a excitação é própria do início e não dura para sempre. A emoção intensa que um garoto tem quando pensa em aprender a pilotar um avião não sobrevive quando ele se junta à Força Aérea, onde realmente vai aprender o que é voar. A palpitação de conhecer um lugar novo se esvai quando se passa a morar lá. Acaso quero dizer que não devemos aprender a voar ou não devemos morar num lugar aprazível? De jeito nenhum. Em ambos os casos, se você perseverar, o arrepio da novidade, quando morre, é compensado por um interesse mais sereno e duradouro. Além disso (e mal consigo lhe dizer o quanto isto é importante), são exatamente as pessoas dispostas a sofrer a perda do frêmito inicial e a acatar esse interesse mais sóbrio que têm maior probabilidade de encontrar novas emoções em campos diferentes. O homem que aprendeu a voar e se tornou um bom piloto subitamente descobre a música; o homem que se estabeleceu num local idílico descobre a jardinagem.
Segundo me parece, essa é uma pequena parte do que Cristo quis dizer quando afirmou que nada pode viver realmente sem antes morrer. Simplesmente não vale a pena tentar manter viva uma sensação forte e fugaz: é a pior coisa que podemos fazer. Deixe o frisson ir embora — deixe-o morrer. Se você passar por esse período de morte e penetrar na felicidade mais discreta que o segue, passará a viver num mundo que a todo tempo lhe dará novas emoções. Mas, se fizer das emoções fortes a sua dieta diária e tentar prolongá-las artificialmente, elas vão se tornar cada vez mais fracas, cada vez mais raras, até você virar um velho entediado e desiludido para o resto da vida. É por serem tão poucas as pessoas que entendem isso que encontramos tantos homens e mulheres de meia-idade lamentando a juventude perdida, na idade mesma em que novos horizontes deveriam descortinar-se e novas portas deveriam abrir-se. É muito mais divertido aprender a nadar que tentar resgatar incessantemente (e inutilmente) a sensação da primeira vez que chapinhamos na água quando garotos.
Outra idéia que apreendemos de romances e peças de teatro é que a paixão amorosa é algo irresistível, algo que simplesmente "contraímos", como sarampo. Por acreditar nisso, certas pessoas casadas largam tudo e se atiram a um novo amor quando se sentem atraídas por alguém. Penso, porém, que essas paixões irresistíveis são muito mais raras na vida real que nos livros, pelo menos depois de chegarmos à idade adulta. Quando conhecemos uma pessoa bonita, inteligente e bem-humorada, é claro que devemos, num certo sentido, admirar e amar essas belas qualidades. Porém, não cabe a nós em boa medida julgar se esse amor deve ou não dar lugar ao que chamamos de paixão amorosa? Sem dúvida, se nossa cabeça está cheia de romances, peças e canções sentimentalistas, e nosso corpo está cheio de álcool, vamos tender a transformar qualquer amor nesse tipo específico de amor, da mesma forma que, se houver uma valeta junto à estrada num dia de chuva, toda a água vai correr por ela, ou, se você estiver usando um par de óculos de lentes azuis, tudo ficará azulado. A culpa será sua.
Antes de deixar a questão do divórcio, gostaria de esclarecer a distinção entre duas coisas que geralmente se confundem. Uma delas é a concepção cristã de casamento; a outra, completamente diferente, é se os cristãos, enquanto eleitores ou membros do Parlamento, devem impor sua visão do casamento sobre o restante da comunidade, incorporando essa visão às leis estatais que regem o divórcio. Um grande número de pessoas parece pensar que, se você é cristão, deve tentar tornar o divórcio difícil para todo o mundo. Eu não penso assim. Pelo menos creio que ficaria bastante zangado se os muçulmanos tentassem proibir que o restante da população tomasse vinho. Minha opinião é que as Igrejas devem reconhecer francamente que a maioria dos britânicos não são cristãos, e, portanto, não se deve esperar que levem uma vida cristã. Deve haver dois tipos distintos de casamento: um governado pelo Estado, com regras aplicáveis a todos os cidadãos, e outro governado pela Igreja, com regras que ela mesma aplica a seus membros. A distinção entre os dois tipos deve ser bastante nítida, de tal forma que se saiba sem sombra de dúvida quais casais são casados pela Igreja e quais não.
Isso já é o bastante a respeito da doutrina cristã da indissolubilidade do casamento. Resta tratar de outra coisa, ainda menos popular. As esposas cristãs fazem o voto de obedecer a seus maridos. No casamento cristão, diz-se que os homens são a "cabeça". Duas questões obviamente se levantam. (1) Por que a necessidade de uma "cabeça" — por que não a igualdade? (2) Por que a "cabeça" deve ser o homem?
(1) A necessidade de uma cabeça segue-se da idéia de que o casamento é permanente. É claro que, na medida em que o marido e a esposa estão de acordo, a necessidade de um líder desaparece; e gostaríamos que esse fosse o estado de coisas normal no casamento cristão. Mas, quando existe um desacordo real, o que se deve fazer? Conversar sobre o assunto, é claro; estou partindo da idéia de que tentatam fazer isso e mesmo assim não conseguiram chegar a um acordo. O que fazer então? O casal não pode decidir por votação, pois não existe maioria absoluta entre duas pessoas. Certamente, uma das duas coisas pode acontecer: podem separar-se e cada um ir para o seu lado, ou então uma das partes deve ter o poder de decisão. Se o casamento é permanente, uma das duas partes deve, em última instância, ter o poder de decidir a política familiar. Não se pode ter uma associação permanente sem uma constituição.
(2) Se há a necessidade de um líder, por que o homem? Em primeiro lugar, pergunto: existe uma vontade generalizada de que isso caiba à mulher? Como eu disse, não sou casado, mas, pelo que vejo, nem mesmo a mulher que quer ser a chefe de sua própria casa admira essa situação quando a observa na casa ao lado. Nessas circunstâncias, costuma exclamar: "Pobre sr. X! Por que ele se deixa dominar por aquela mulherzinha horrível? Isso está acima da minha compreensão." Também não penso que ela fique lisonjeada quando alguém menciona o fato de ser ela a "cabeça". Deve haver algo de anti-natural na proeminência das esposas sobre os maridos, pois as próprias esposas ficam bastante envergonhadas disso e desprezam o marido que se submete. Porém, há mais uma razão, e sobre ela falo francamente a partir da minha condição de solteiro, pois pode ser vista melhor por quem está de fora que por quem está dentro. As relações da família com o mundo exterior - o que poderíamos chamar de política externa — devem depender, em última análise, do homem, porque ele deve ser, e normalmente é, mais justo em relação às pessoas de fora. A mulher luta prioritariamente pelos filhos e pelo marido contra o resto do mundo. Naturalmente e, em certo sentido, quase com razão, as necessidades deles são priorizadas em detrimento de todas as outras necessidades. A mulher é a curadora especial dos interesses da família. A função do marido é garantir que essa predisposição natural da mulher não chegue a predominar. Ele tem a última palavra para proteger as outras pessoas do intenso patriotismo familiar da esposa. Se alguém duvida de mim, deixe-me fazer uma pergunta simples. Se seu cachorro mordeu a criança da casa ao lado, ou se seu filho machucou o cachorro do vizinho, com quem você prefere tratar — com o chefe da família ou com a dona da casa? E, se você é uma mulher casada, deixe-me fazer outra pergunta. Apesar de admirar seu marido, você não diria que a falha principal dele está em não fazer valer os direitos da família contra os dos vizinhos tão vigorosamente quanto você gostaria? Não seria ele apaziguador demais?
C.S.LEWIS
O capítulo anterior foi quase todo negativo. Nele discuti o que há de errado com o impulso sexual no homem, mas falei muito pouco sobre seu funcionamento correto - em outras palavras, sobre o casamento cristão. Há duas razões pelas quais não quis abordar o tema do casamento. A primeira é que a doutrina cristã sobre o assunto é extremamente impopular. A segunda é que nunca fui casado, e, portanto, não posso falar sobre ele por experiência própria. Apesar disso, sinto que não posso deixar este assunto de lado num sumário da moral cristã.
A idéia cristã de casamento se baseia nas palavras de Cristo de que o homem e a mulher devem ser considerados um único organismo - tal é o sentido que as palavras "uma só carne" teriam numa língua moderna. Os cristãos acreditam que, quando disse isso, ele não estava expressando um sentimento, mas afirmando um fato — da mesma forma que expressa um fato quem diz que o trinco e a chave são um único mecanismo, ou que o violino e o arco formam um único instrumento musical. O inventor da máquina humana queria nos dizer que as duas metades desta, o macho e a fêmea, foram feitas para combinar-se aos pares, não simplesmente na esfera sexual, mas em todas as esferas. A monstruosidade da relação sexual fora do casamento é que, cedendo a ela, tenta-se isolar um tipo de união (a sexual) de todos os outros tipos de união que deveriam acompanhá-la para compor a união total. A atitude cristã não toma como errada a existência de prazer no sexo, como não considera errado o prazer que temos quando nos alimentamos. O erro está em querer isolar esse prazer e tentar buscá-lo por si mesmo, da mesma maneira que não se deve buscar os prazeres do paladar sem engolir e digerir a comida, apenas mastigando-a e cuspindo-a.
Em conseqüência, o cristianismo ensina que o casamento deve durar a vida toda. Neste ponto, é claro que existem diferenças entre as diversas Igrejas: algumas não admitem o divórcio em hipótese alguma; outras o admitem com relutância em casos específicos. É uma grande lástima que os cristãos divirjam quanto a essa questão; para um leigo, porém, o fato a notar é que, no que diz respeito ao casamento, todas as Igrejas concordam muito mais umas com as outras do que concordam com o que vem do mundo exterior. Todas encaram o divórcio como se fosse algo que cortasse ao meio um organismo vivo, como um tipo de cirurgia. Algumas acham que essa cirurgia é tão violenta que não deve ser feita de forma alguma. Outras a admitem como um recurso desesperado em casos extremos. Todas asseveram que o divórcio se parece mais com a amputação das pernas do corpo do que com a dissolução de uma sociedade comercial ou mesmo com o ato de deserção de um soldado. O que todas elas repudiam é a visão moderna de que o divórcio é simplesmente um reajustamento de parceiros, a ser feito sempre que as pessoas não se sentem mais apaixonadas uma pela outra, ou quando uma delas se apaixona por outra pessoa.
Antes de analisar essa visão moderna e sua relação com a castidade, não devemos deixar de considerar sua relação com outra virtude - a saber, a justiça. A justiça, como eu disse antes, inclui a fidelidade à própria palavra. Todos os que se casaram na igreja fizeram a promessa pública e solene de permanecer unidos até a morte. O dever de cumprir essa promessa não tem nenhum vínculo especial com a moralidade sexual: ela está em pé de igualdade com qualquer outra promessa. Se, como as pessoas hoje em dia insistem em dizer, o impulso sexual é igual a todos os outros impulsos, então deve ser tratado em pé de igualdade com eles. Assim como o gozo de todo e qualquer impulso é controlado por nossas promessas, assim deve ser o gozo do impulso sexual. No entanto, se, segundo penso, ele não é igual a nossos demais impulsos, mas encontra-se morbidamente inflamado, devemos ter mais cautela para que ele não nos leve à desonestidade.
Certas pessoas podem retrucar dizendo que consideram a promessa feita na igreja uma simples formalidade, a qual nunca tencionaram cumprir. A quem, então, pretendiam enganar quando fizeram tal promessa? A Deus? Isso não é nada sensato. A si mesmas? Isso não é muito mais sensato que a alternativa anterior. Enganar a noiva, o noivo, os sogros? Isso é traição. É mais freqüente, na minha opinião, o casal (ou um deles) querer enganar o público. Quer a respeitabilidade que vem do casamento sem ter de pagar por isso: ou seja, são impostores, são enganadores. Se essas pessoas são desonestas e não se preocupam com isso, não tenho nada a lhes dizer. Quem poderia adverti-las a seguir o nobre, mas penoso, dever da castidade, se elas não pretendem nem mesmo ser honestas? Caso recobrassem a razão, a própria promessa feita as constrangeria. Tudo isso, como você pode notar, está circunscrito ao âmbito da justiça, e não da castidade. Se as pessoas não acreditam em casamento para sempre, talvez seja melhor viver juntas sem estar casadas que fazer uma promessa que não pretendem cumprir. É claro que, ao viver juntas sem estar unidas pelo matrimônio, elas são culpadas de fornicação (sob o ponto de vista cristão). Uma falta, porém, não conserta a outra: a falta de castidade não é minorada quando a ela se acrescenta o perjúrio.
A idéia de que "estar enamorado" é o único motivo válido para permanecer casado é totalmente contrária à idéia do matrimônio como um contrato ou mesmo como uma promessa, Se tudo se resume ao amor, o ato da promessa nada lhe acrescenta; e, assim, nem deveria ser feito. Uma coisa curiosa é que os próprios amantes, enquanto permanecem apaixonados, sabem disso muito mais que os que só falam de amor. Como observou Chesterton (Gilbert Keith Chesterton (1874-1936), escritor cristão inglês.), os apaixonados têm a tendência natural de fazer promessas um ao outro. As canções de amor do mundo inteiro estão repletas de juras de fidelidade eterna. A lei cristã não exige do amor algo que é alheio à sua natureza: exige apenas que os amantes levem a sério algo que a própria paixão os impele a fazer.
E é evidente que a promessa de ser fiel para sempre, que fiz quando estava apaixonado e porque o estava, deve ser cumprida mesmo que deixe de estar. A promessa diz respeito a ações, a coisas que posso fazer: ninguém pode fazer a promessa de ter um determinado sentimento para sempre. Seria o mesmo que prometer nunca mais ter dor de cabeça ou nunca mais ter fome. Pode-se perguntar, no entanto, qual o sentido de manter unidas duas pessoas que não se amam mais. Existem várias razões sociais bem fundamentadas para tanto: dar um lar para os filhos, proteger a mulher (que provavelmente sacrificou a carreira pelo casamento) de ser trocada por outra quando o marido se cansar dela. Existe, no entanto, um outro motivo do qual estou bastante convencido, mesmo que o julgue difícil de explicar.
E difícil porque tanta gente não consegue se dar conta de que, mesmo que "B" seja melhor que "C", talvez "A" seja melhor que ambos. As pessoas gostam de raciocinar com os termos "bom" e "mau", não com os termos "bom", "melhor" e "o melhor de todos", e "ruim", "pior" e "o pior de todos". Elas perguntam se você julga o patriotismo uma coisa boa; se você responde que ele é muito melhor que o egoísmo dos indivíduos, mas bastante inferior à caridade universal, e que deve ceder lugar a esta sempre que os dois estiverem em conflito, elas acham sua resposta evasiva. Perguntam o que você acha dos duelos. Se você responde que é muito melhor um homem perdoar o próximo que duelar com ele, mas que o duelo pode ser uma alternativa melhor que uma inimizade eterna, expressa no esforço secreto de causar a ruína do oponente, elas se queixam de que você não ofereceu uma resposta franca e direta. Espero que ninguém cometa o mesmo erro com o que tenho a dizer agora. O que chamamos de "estar apaixonado" é um estado maravilhoso e, sob diversos aspectos, benéfico para nós. Ajuda-nos a ser mais generosos e corajosos, abre nossos olhos não apenas para a beleza do objeto amado, mas para toda a beleza, e subordina (especialmente no início) nossa sexualidade animal; nesse sentido, o amor é o grande subjugador do desejo. Ninguém que tenha o uso perfeito da razão negaria que estar apaixonado é melhor que a sensualidade ordinária ou o frio egocentrismo. Mas, como eu disse antes, "a coisa mais perigosa que podemos fazer é tomar um certo impulso de nossa natureza como padrão a ser seguido custe o que custar". Estar apaixonado é muito bom, mas não é a melhor coisa do mundo. Existem muitas coisas abaixo, mas também muitas outras acima disso. A paixão amorosa não pode ser a base de uma vida inteira. É um sentimento nobre, mas, mesmo assim, é apenas um sentimento. Não podemos nos fiar em que um sentimento vá conservar para sempre sua intensidade total, ou mesmo que vá perdurar. O conhecimento perdura, como também os princípios e os hábitos, mas os sentimentos vêm e vão.
E, o que quer que as pessoas digam, a verdade é que o estado de paixão amorosa normalmente não dura. Se o velho final dos contos de fadas: "E viveram felizes para sempre", quisesse dizer que "pelos cinqüenta anos seguintes sentiram-se atraídos um pelo outro como no dia anterior ao casamento", estaria se referindo a algo que não acontece na realidade, que não pode acontecer e que, mesmo que pudesse, seria pouquíssimo recomendável. Quem conseguiria viver nesse estado de excitação mesmo por cinco anos? Que seria do trabalho, do apetite, do sono, das amizades? E claro, porém, que o fim da paixão amorosa não significa o fim do amor. O amor nesse segundo sentido - distinto da "paixão amorosa" - não é um mero sentimento. É uma unidade profunda, mantida pela vontade e deliberadamente reforçada pelo hábito; é fortalecida ainda (no casamento cristão) pela graça que ambos os cônjuges pedem a Deus e dele recebem. Eles podem fruir desse amor um pelo outro mesmo nos momentos em que se desgostam, da mesma forma que amamos a nós mesmos mesmo quando não gostamos da nossa pessoa. Conseguem manter vivo esse amor mesmo nas situações em que, caso se descuidassem, poderiam ficar "apaixonados" por outra pessoa. Foi a "paixão amorosa" que primeiro os moveu a jurar fidelidade recíproca. O amor sereno permite que cumpram o juramento. E através desse amor que a máquina do casamento funciona: a paixão amorosa foi a fagulha que a pôs em funcionamento.
Se você discorda de mim, é claro que vai dizer: "Ele não sabe do que está falando. Ele nem é casado." Talvez você tenha razão. Antes de dizer isso, porém, tome o cuidado de embasar seu julgamento nas coisas que você conhece por experiência pessoal ou pela observação de seus amigos, e não em idéias derivadas de romances ou de filmes. Isso não é tão fácil de fazer quanto as pessoas pensam. Nossa experiência é preenchida pelas cores dos livros, peças de teatro e filmes do cinema, e é necessário ter paciência para delas desentranhar e para separar o que aprendemos da vida por nós mesmos.
As pessoas tiram dos livros a idéia de que, se você casou com a pessoa certa, viverá "apaixonado" para sempre. Como resultado, quando se dão conta de que não é isso o que ocorre, chegam à conclusão de que cometeram um erro, o que lhes daria o direito de mudar - não percebem que, da mesma forma que a antiga paixão se desvaneceu, a nova também se desvanecerá. Nesse departamento da vida, como em qualquer outro, a excitação é própria do início e não dura para sempre. A emoção intensa que um garoto tem quando pensa em aprender a pilotar um avião não sobrevive quando ele se junta à Força Aérea, onde realmente vai aprender o que é voar. A palpitação de conhecer um lugar novo se esvai quando se passa a morar lá. Acaso quero dizer que não devemos aprender a voar ou não devemos morar num lugar aprazível? De jeito nenhum. Em ambos os casos, se você perseverar, o arrepio da novidade, quando morre, é compensado por um interesse mais sereno e duradouro. Além disso (e mal consigo lhe dizer o quanto isto é importante), são exatamente as pessoas dispostas a sofrer a perda do frêmito inicial e a acatar esse interesse mais sóbrio que têm maior probabilidade de encontrar novas emoções em campos diferentes. O homem que aprendeu a voar e se tornou um bom piloto subitamente descobre a música; o homem que se estabeleceu num local idílico descobre a jardinagem.
Segundo me parece, essa é uma pequena parte do que Cristo quis dizer quando afirmou que nada pode viver realmente sem antes morrer. Simplesmente não vale a pena tentar manter viva uma sensação forte e fugaz: é a pior coisa que podemos fazer. Deixe o frisson ir embora — deixe-o morrer. Se você passar por esse período de morte e penetrar na felicidade mais discreta que o segue, passará a viver num mundo que a todo tempo lhe dará novas emoções. Mas, se fizer das emoções fortes a sua dieta diária e tentar prolongá-las artificialmente, elas vão se tornar cada vez mais fracas, cada vez mais raras, até você virar um velho entediado e desiludido para o resto da vida. É por serem tão poucas as pessoas que entendem isso que encontramos tantos homens e mulheres de meia-idade lamentando a juventude perdida, na idade mesma em que novos horizontes deveriam descortinar-se e novas portas deveriam abrir-se. É muito mais divertido aprender a nadar que tentar resgatar incessantemente (e inutilmente) a sensação da primeira vez que chapinhamos na água quando garotos.
Outra idéia que apreendemos de romances e peças de teatro é que a paixão amorosa é algo irresistível, algo que simplesmente "contraímos", como sarampo. Por acreditar nisso, certas pessoas casadas largam tudo e se atiram a um novo amor quando se sentem atraídas por alguém. Penso, porém, que essas paixões irresistíveis são muito mais raras na vida real que nos livros, pelo menos depois de chegarmos à idade adulta. Quando conhecemos uma pessoa bonita, inteligente e bem-humorada, é claro que devemos, num certo sentido, admirar e amar essas belas qualidades. Porém, não cabe a nós em boa medida julgar se esse amor deve ou não dar lugar ao que chamamos de paixão amorosa? Sem dúvida, se nossa cabeça está cheia de romances, peças e canções sentimentalistas, e nosso corpo está cheio de álcool, vamos tender a transformar qualquer amor nesse tipo específico de amor, da mesma forma que, se houver uma valeta junto à estrada num dia de chuva, toda a água vai correr por ela, ou, se você estiver usando um par de óculos de lentes azuis, tudo ficará azulado. A culpa será sua.
Antes de deixar a questão do divórcio, gostaria de esclarecer a distinção entre duas coisas que geralmente se confundem. Uma delas é a concepção cristã de casamento; a outra, completamente diferente, é se os cristãos, enquanto eleitores ou membros do Parlamento, devem impor sua visão do casamento sobre o restante da comunidade, incorporando essa visão às leis estatais que regem o divórcio. Um grande número de pessoas parece pensar que, se você é cristão, deve tentar tornar o divórcio difícil para todo o mundo. Eu não penso assim. Pelo menos creio que ficaria bastante zangado se os muçulmanos tentassem proibir que o restante da população tomasse vinho. Minha opinião é que as Igrejas devem reconhecer francamente que a maioria dos britânicos não são cristãos, e, portanto, não se deve esperar que levem uma vida cristã. Deve haver dois tipos distintos de casamento: um governado pelo Estado, com regras aplicáveis a todos os cidadãos, e outro governado pela Igreja, com regras que ela mesma aplica a seus membros. A distinção entre os dois tipos deve ser bastante nítida, de tal forma que se saiba sem sombra de dúvida quais casais são casados pela Igreja e quais não.
Isso já é o bastante a respeito da doutrina cristã da indissolubilidade do casamento. Resta tratar de outra coisa, ainda menos popular. As esposas cristãs fazem o voto de obedecer a seus maridos. No casamento cristão, diz-se que os homens são a "cabeça". Duas questões obviamente se levantam. (1) Por que a necessidade de uma "cabeça" — por que não a igualdade? (2) Por que a "cabeça" deve ser o homem?
(1) A necessidade de uma cabeça segue-se da idéia de que o casamento é permanente. É claro que, na medida em que o marido e a esposa estão de acordo, a necessidade de um líder desaparece; e gostaríamos que esse fosse o estado de coisas normal no casamento cristão. Mas, quando existe um desacordo real, o que se deve fazer? Conversar sobre o assunto, é claro; estou partindo da idéia de que tentatam fazer isso e mesmo assim não conseguiram chegar a um acordo. O que fazer então? O casal não pode decidir por votação, pois não existe maioria absoluta entre duas pessoas. Certamente, uma das duas coisas pode acontecer: podem separar-se e cada um ir para o seu lado, ou então uma das partes deve ter o poder de decisão. Se o casamento é permanente, uma das duas partes deve, em última instância, ter o poder de decidir a política familiar. Não se pode ter uma associação permanente sem uma constituição.
(2) Se há a necessidade de um líder, por que o homem? Em primeiro lugar, pergunto: existe uma vontade generalizada de que isso caiba à mulher? Como eu disse, não sou casado, mas, pelo que vejo, nem mesmo a mulher que quer ser a chefe de sua própria casa admira essa situação quando a observa na casa ao lado. Nessas circunstâncias, costuma exclamar: "Pobre sr. X! Por que ele se deixa dominar por aquela mulherzinha horrível? Isso está acima da minha compreensão." Também não penso que ela fique lisonjeada quando alguém menciona o fato de ser ela a "cabeça". Deve haver algo de anti-natural na proeminência das esposas sobre os maridos, pois as próprias esposas ficam bastante envergonhadas disso e desprezam o marido que se submete. Porém, há mais uma razão, e sobre ela falo francamente a partir da minha condição de solteiro, pois pode ser vista melhor por quem está de fora que por quem está dentro. As relações da família com o mundo exterior - o que poderíamos chamar de política externa — devem depender, em última análise, do homem, porque ele deve ser, e normalmente é, mais justo em relação às pessoas de fora. A mulher luta prioritariamente pelos filhos e pelo marido contra o resto do mundo. Naturalmente e, em certo sentido, quase com razão, as necessidades deles são priorizadas em detrimento de todas as outras necessidades. A mulher é a curadora especial dos interesses da família. A função do marido é garantir que essa predisposição natural da mulher não chegue a predominar. Ele tem a última palavra para proteger as outras pessoas do intenso patriotismo familiar da esposa. Se alguém duvida de mim, deixe-me fazer uma pergunta simples. Se seu cachorro mordeu a criança da casa ao lado, ou se seu filho machucou o cachorro do vizinho, com quem você prefere tratar — com o chefe da família ou com a dona da casa? E, se você é uma mulher casada, deixe-me fazer outra pergunta. Apesar de admirar seu marido, você não diria que a falha principal dele está em não fazer valer os direitos da família contra os dos vizinhos tão vigorosamente quanto você gostaria? Não seria ele apaziguador demais?
C.S.LEWIS
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